São Paulo – Cerca de 50 pessoas se dirigiram hoje (5) ao Cemitério do Araçá, na zona oeste de São Paulo, para engrossar uma manifestação de repúdio ao ataque sofrido pela obra Penetrável Genet e por três ossadas na madrugada do último domingo. Tanto a instalação artística como os restos mortais se encontravam no Ossário Geral da necrópole, arrombado horas depois de uma cerimônia ecumênica realizada no mesmo lugar, no sábado, Dia de Finados, em memória dos mortos e desaparecidos durante a ditadura. O ossário também abriga 1.406 esqueletos encontrados em 1990 na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte da capital, utilizada pelos órgãos da repressão para ocultar cadáveres de perseguidos políticos.
“Devemos aproveitar a oportunidade criada por esse ato de violência para transformar o vandalismo naquilo em que consiste nossa luta, que é o direito à memória e à verdade, que é a identificação dessas ossadas o mais rápido possível”, afirmou o secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Rogério Sottili, um dos idealizadores do protesto. Sottili lembrou o pedido feito ontem à ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário, para que as ossadas de Perus sejam identificadas o quanto antes. Caso contrário, argumenta, ficarão expostas a novos ataques – e podem não ter a mesma sorte que tiveram no último final de semana: saíram incólumes. “Não se justifica estarmos há mais de 20 anos sem estudá-las.”
Respondendo a uma solicitação de Sottili, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), José Carlos Dias, que também compareceu à manifestação, se comprometeu pessoalmente a contatar o diretor-geral da Polícia Federal, Leandro Daiello Coimbra, e pedir-lhe que auxilie nas investigações. “Tenho certeza que a PF irá atender o pedido para que se consiga definir a responsabilidade e a autoria desse ato de vandalismo”, disse Dias, que conferiu os danos causados à obra Penetrável Genet e se abalou com a inscrição deixada pelos agressores. “É interessante verificar que na pichação esteja colocada a sigla CNV, que é a Comissão Nacional da Verdade. Esse é um dado concreto, que mostra que é uma ação dirigida contra o trabalho que estamos fazendo. É uma provocação, um desafio que vamos enfrentar.”
Apenas hoje, durante a visita coletiva ao palco da depredação, é que os artistas Celso Sim e Anna Ferrari, autores da obra danificada, perceberam que o recado escrito em vermelho pelos vândalos trazia as iniciais “CNV”. Até ontem, apenas haviam conseguido identificar na mensagem o número “13” e a letra “A” rodeada por um círculo, que simboliza o anarquismo. “Que eu saiba, os anarquistas não profanam túmulos”, ponderou Sim, que se disse “muito feliz e seguro” pelo apoio recebido de autoridades e da sociedade civil logo após a violação do Ossário Geral. “Ainda bem que a reação foi imediata, profunda e enérgica. Esse tipo de coisa não se pode deixar passar: agrediram um morto e a uma obra de arte. Isso não é crime comum nem aqui nem na Coreia do Norte. Coincidência tem limite.”
A Polícia Civil de São Paulo, no entanto, ainda não considera em suas investigações a hipótese de que a agressão tenha sido motivada por razões políticas. De acordo com o delegado Marco Aurélio Batista, titular do 23º Distrito Policial, em Perdizes, os trabalhos pouco avançaram. Alguns funcionários do Cemitério do Araçá já foram ouvidos, bem como o administrador da necrópole. Investigadores foram ao Ossário Geral ontem para fazer averiguações. “Mas ainda não temos nenhum indício, nenhuma novidade”, informou. Celso acompanhou a perícia realizada pelos policiais e tem dúvidas quanto à efetividade da apuração. O artista lembra que a cena do crime foi totalmente modificada antes que os agentes chegassem. “O cemitério deveria ter sido interditado na hora, e a Polícia Federal, chamada para recolher digitais. Mas nada disso foi feito.”
Apesar do choque produzido pelo ataque, nenhuma das pessoas presentes à manifestação de hoje se disse completamente surpresa com o ocorrido. “O que aconteceu aqui tem um significado: que nós estamos vivos e eles também estão vivos”, interpretou José Carlos Dias, coordenador da CNV, em referência aos setores políticos, sociais e econômicos que se opuseram e os que apoiaram a ditadura. “Temos de continuar lutando cada vez mais para desmascarar essa violência, porque eles estão mostrando as caras.” Também membro da CNV, a psicanalista Maria Rita Kehl concordou com a ideia. Minutos antes, José Luís Del Roio, ex-militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), lembrara uma frase do dramaturgo alemão Bertolt Brecht: “O ventre imundo que gerou o fascismo ainda é fértil”, citou, completando: “E como é fértil!”
O deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”, lamentou que o Estado brasileiro tenha perdido mais uma vez a oportunidade oferecida pelo Dia de Finados para reforçar a luta pelo paradeiro dos desaparecidos políticos. “Que pena que não aproveitamos essa data para abrir os arquivos militares e para pedir-lhes que revelem onde estão os insepultos, onde estão os desaparecidos e quem os colocou lá. Isso não depende da Justiça. E é tão pouco o que os familiares estão pedindo”, recordou, fazendo uma ressalva: “Se vai punir, se não vai punir, isso é outro capítulo. Nós estamos agora no capítulo da memória. Por que não dizer aos parentes onde estão seus entes queridos?”
Procuradas pela reportagem, Polícia Federal e Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República não responderam às solicitações de entrevista.