A Comissão da Verdade de São Paulo suspendeu a audiência pública que seria realizada nesta sexta-feira (14) para discutir o caso de Ana Rosa Kucinski Silva e Wilson Silva, casal desaparecido desde a tarde 22 de abril de 1974, quando comemoravam quatro anos de união. O adiamento foi feito a pedido da família de Ana Rosa, porque a direção da Universidade de São Paulo (USP), onde ela era professora, decidiu não participar, considerando o evento “prematuro” e “inoportuno”, de acordo com correspondência encaminhada à comissão pelo superintendente de Relações Institucionais da instituição, Wanderlei Messias da Costa.
Na segunda-feira (10), o escritor e jornalista Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa e ex-professor da USP, encaminhou mensagem à Comissão da Verdade paulista, lamentando a postura da universidade. A comissão pretendia discutir as circunstâncias da demissão da professora do Instituto de Química em 1975, quase um ano após o desaparecimento. “E o tempo urge. Meu irmão Wulf Kucinski, que tanto batalhou pela localização de minha irmã, faleceu no ano passado aos 80 anos de idade, sem conhecer a verdade dos fatos. Eu já estou na casa dos 76 anos.”
O caso é emblemático na maior universidade brasileira. O Fórum Aberto pela Democratização da USP já se manifestou no sentido de que a universidade anule a demissão por “abandono de função” de Ana Rosa, que tinha 32 anos na época do desaparecimento.
Presidente da Comissão da Verdade da USP, o professor Dalmo de Abreu Dallari lembrou que o colegiado ainda não foi instalado, o que pode ocorrer a partir da próxima semana. “Até agora não tivemos nenhuma reunião. Esse (Ana Rosa) é um dos casos que a gente vai ter de analisar. Vamos trabalhar com ocorrências diretamente relacionadas com as atividades universitárias.” Ele também pretende procurar as duas outras comissões universitárias de São Paulo, da PUC e da Unifesp, para troca de informações.
A USP decidiu formar sua própria Comissão da Verdade, mas o processo foi contestado por parte da comunidade acadêmica – o fórum o considerou autoritário. O superintendente disse que a comissão “encontra-se em fase de instalação e início das suas atividades”. Em maio, a reitoria nomeou os sete professores que compõem a CV.
Vítima do Estado
Em 1995, o nome de Ana Rosa, que era militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi incluído na lista de 136 pessoas consideras desaparecidas, conforme a Lei 9.140. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos declarou a professora como vítima do Estado brasileiro.
Dois anos antes, em 1993, o ex-cabo do Exército José Rodrigues Gonçalves concedeu depoimento à jornalista Mônica Bergamo para uma reportagem que terminou não sendo publicada pela revista Veja, na qual afirma que Ana Rosa e Wilson foram presos pelo Dops paulista e transferidos para a chamada Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), onde teriam sido assassinados dias depois. O ex-delegado Cláudio Guerra, em depoimento para o livro Memórias de uma Guerra Suja, dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, afirmou que o corpo da professora foi incinerado na usina Cambaíba, em Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense.
Em outubro do ano passado, quando assinaram termo de cooperação, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a comissão paulista pediram à Congregação do Instituto de Química da USP e ao reitor da universidade que revisse a decisão de outubro de 1975, sobre a demissão da professora. “Apesar de o então reitor da USP, Flávio Fava de Moraes, em 1995, ter determinado o cancelamento da demissão de Ana Rosa Kucinski, mesmo ano em que a professora foi declarada desaparecida pelo governo federal, é preciso que o Instituto de Química reveja publicamente essa decisão da congregação de 1975, o que até hoje não ocorreu”, afirmou a CNV.
Na carta que encaminhou ao deputado Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão da Verdade paulista, o escritor lembra do episódio, quando o reitor Flávio Fava atendeu a requerimento do próprio Kucinski e ao parecer da assessoria jurídica da USP, emitindo (em 20 de julho de 1995), ordem para que fosse cancelada a demissão de Ana Rosa, para “restaurar a verdade histórica”. “Ficou faltando a mesma restauração da verdade histórica no âmbito da burocracia e do sistema de poder da universidade em si.” Para ele, os procedimentos que resultaram na demissão de Ana Rosa “constituíram um processo coletivo da USP como organismo social, envolvendo servidores e professores e instituições e formalismos de todos os escalões da Universidade desde sua assessoria jurídica até a Congregação da Química”.
Também na carta, Bernardo Kucinski disse considerar um “subterfúgio” a justificativa do reitor João Grandino Rodas, de que foi formada uma comissão específica na USP, para não comparecer à audiência. E voltou a criticar a postura da instituição. “Enquanto entidades como a Anistia Internacional e a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo já se empenhavam em denunciar a repressão política no Brasil, a Congregação da Química e a Reitoria dessa universidade optaram pelo caminho oposto de legitimar e dar cobertura ao ato criminoso do sequestro e desaparecimento de minha irmã. É disso que se trata.”
Ele disse ainda lamentar manifestação do instituto, em 2012, que ignorava as circunstâncias do desaparecimento de Ana Rosa. E reiterou disposição de comparecer diante da comissão, “desde que assim o façam os dirigentes dos setores da USP envolvidos no caso e/ou com conhecimento dos fatos”.