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Postado em: 14/09/2006 - 15h50 | Redação

Um outro 11 de setembro

Debaixo dos escombros das torres gêmeas de Nova Iorque não ficaram só os mais de dois milhares de mortos em conseqüência dos ataques aéreos suicidas de 11 de setembro de 2001. A rememoração deste episódio sombrio do atual século ofusca também outro, o de 11 de setembro de 1973, também este uma grande catástrofe mundial.

Quando os militares golpistas atacaram o Palácio de La Moneda, em Santiago do Chile, sob o comando traiçoeiro do Gen. Pinochet, não foi só o presidente Salvador Allende que depuseram, ou o seu país que arrastaram numa espiral criminosa.

Ali, naquele dia, uma América Latina foi reduzida a escombros – com apoio da CIA, do governo norte-americano e das ditaduras já instaladas no continente, inclusive a brasileira, que para lá enviou agentes policiais e militares.

O modelo chileno de golpe teve peculiaridades. O brasileiro foi seletivo, levando a prisão de milhares de oposicionistas mas à eliminação direta de poucos. O argentino, por ter-se envolvido com a bandidagem, levou à eliminação algo indiscriminada de oponentes ou denunciados como tal, por gente que queria, às vezes, simplesmente apossar-se de seus bens. Isso levou anos para se consumar.

O modelo chileno foi o da eliminação massiva, brutal e rápida. Foram dezenas de milhares de mortos, a maioria em poucos dias.

O caso brasileiro criou um quarto fechado, cuja abertura talvez só seja possível ainda daqui há muitas décadas. O caso argentino criou uma chaga inarredável, ainda aberta. No Fórum Social da Venezuela entrevistei uma das mães da Plaza de Mayo. Ela contou ao vivo, na TV Carta Maior, a história das três fundadoras do movimento, que também foram mortas e tiveram seus corpos jogados ao mar. Mas as águas trouxeram os corpos de volta, e eles foram sepultados em covas secretas, só há pouco descobertas. “El mar no quizo ser cúmplice”, disse ela.

Mas o caso chileno criou um vácuo na memória, uma espécie de buraco negro, pelo horror da rapidez com que o massacre foi perpetrado. Mas não foi só isso. O vácuo se estendeu pelo continente inteiro. Depois da revolução cubana de 1959, as tentativas armadas de revolução no continente entraram em impasses variados. No Brasil a resistência armada já estava em crise, apesar de continuarem ativos focos guerrilheiros no Pará, alimentados pelo PCdoB.

A experiência democrática do Chile era uma via de esperança renovada, não só de se chegar a alguma transformação social significativa, mas também de que esta não fosse podada por um golpe militar. Quando este veio, e com a ferocidade com que veio, caiu uma pá de cal não só dos sonhos de uma transformação, mas sobre o próprio sentimento de humanidade de nós, os latino-americanos.

Seria como se víssemos estampados em nossas faces achincalhadas: “não, vocês não são humanos, não têm direito a uma história; tudo com que podem contar são as lágrimas pelos mortos, e desde que não solucem muito alto”.

Somente agora, com os sucessivos alevantamentos democráticos em diferentes países do continente, com resultados muito diversos entre si, mas carregados do estro da transformação, é que aquele relógio de uma história desmontada teve seus cacos reajustados, voltando a pulsar em direção ao futuro. Tudo isso o Chile nos devia, tudo isso devíamos todos ao Chile: o futuro.

Disse Alfonso Reyes, o grande intelectual mexicano, que todo latino-americano tinha duas pátrias: a sua, e o México, numa lembrança da grande revolução de 1910. Pois bem, hoje, 11 de setembro, e nos 11 de setembro do futuro, somos todos chilenos, aqui, agora, depois e para sempre.

Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.