O lixo nosso de cada dia
A Política Nacional de Resíduos Sólidos, regulamentada no final do ano passado pelo governo federal, exige estudos de avaliação, por parte de vários ministérios, sobre a forma correta de tratamento de resíduos a ser adotada pelas cidades, que têm até junho para se adequar ao novo sistema. Entre as novidades, a responsabilidade pelo lixo nas cidades deixa de ser exclusiva das prefeituras e passa a ser compartilhada com os estados e a União. Fabricantes e distribuidores terão ainda de recolher embalagens dos produtos vendidos – uma antiga cobrança de ambientalistas que deve ampliar os esforços pela coleta, quesito em que o Brasil está bem atrás em relação a outros países.
A destinação mais correta para o lixo urbano ainda é alvo de polêmicas: reciclar, reaproveitar ou incinerar e gerar energia, uma vez que em vários estados discute-se a possibilidade de troca de aterros sanitários por incineradores. “A lei estabelece a forma e a prioridade com que devem ser tratados os resíduos. Não se proíbe a incineração, mas o poder público precisará garantir a coleta seletiva. Assim se pode ver o que é possível reaproveitar, reutilizar e encaminhar outra vez para a cadeia produtiva”, afirma o diretor de Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Sérgio Gonçalves.
Atualmente, a radiografia brasileira que se tem do assunto é assustadora. Conforme dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos 5.565 municípios brasileiros, somente 994 possuem coleta seletiva. Destes, apenas 536 contam, para a coleta, com a participação das cooperativas que contribuem com a separação e utilizam o material reciclado como meio de geração de renda para os catadores. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) prevê que, com a nova legislação, o potencial de renda do segmento salte de R$ 2 bilhões para R$ 8 bilhões.
Ainda são aguardados dados atualizados do censo demográfico sobre quanto lixo comercial e residencial o Brasil coleta. Segundo levantamentos anteriores, eram 240 mil toneladas por dia, das quais 59% iam para lixões a céu aberto (irregulares). Menos de 20% do lixo reutilizável era, de fato, aproveitado. Sem falar que muitas cidades estão com aterros sanitários esgotados e precisam “exportar” lixo para áreas mais afastadas.
Até o final do ano passado, por exemplo, o destino do lixo produzido pelas 18 cidades da Grande Curitiba era incerto, em função da demora para a licitação e construção de novo aterro sanitário. O chamado Lixão da Caximba, que recebia boa parte dos resíduos do Paraná, encerrou sua vida útil em novembro e foi lacrado. Em razão disso, duas áreas particulares (uma em Curitiba e outra na cidade de Fazenda Rio Grande) foram licenciadas de forma emergencial para passar a receber os dejetos. Em Mato Grosso, só 12 dos 141 municípios mantêm aterros sanitários com o lixo acondicionado em valas sépticas e com o correto licenciamento ambiental. Em São Paulo, 156 de seus 645 municípios enviam o lixo para aterros de fora de seus domínios. Em Minas, para 853 cidades existem apenas 226 aterros, menos que os 230 lixões.
No Norte e Nordeste a situação é daí para pior. Na Paraíba, 98% do total do lixo coletado vai para lixões. Em Rondônia, idem. E em todo o país têm sido realizados estudos sobre a capacidade dos aterros e a possibilidade de sua substituição por incineradores. O que, daqui por diante, terá de ser submetido às exigências da nova legislação.
Entraves e dúvidas
No Pará, um grupo formado por médicos, professores, advogados, promotores de Justiça, administradores e estudantes organizou-se, pela internet, para fiscalizar serviços de coleta e destinação de lixo e atuar na conscientização da importância da mudança de hábitos que conferem à cidade de Belém o título de capital mais suja do país. “Vivemos em uma cidade submersa no lixo e parece que estamos nos acostumando com isso”, diz Ana Maria Magalhães, promotora de Justiça e professora de Direito Ambiental, organizadora do Grupo de Combate ao Lixo de Belém.
“No Brasil são gastos por dia mais de R$ 12,8 milhões em coleta e destinação de lixo, mas os governantes ainda não sabem qual a melhor alternativa”, afirma o engenheiro Gilson Matos, professor da Universidade de Brasília (UnB). Segundo Matos, o problema preocupa cada vez mais os países da América Latina e da Europa – a Itália recentemente viveu séria crise relacionada à falta de coleta. Por outro lado, destaca boas experiências na Alemanha, Suécia e Japão, que avançaram ao obrigar empresas a fazer a separação e estão transformando esse material em energia. Exemplo que deveria, como enfatiza, “ser seguido pelo Brasil”.
A especialista em planejamento de limpeza urbana do Distrito Federal Juliana Berber observa que nem tudo que tem potencial de reciclagem consegue ser devidamente separado. Os motivos são os mais diversos, como falta de conscientização das pessoas e carência de um sistema de coleta estável e disponível para a população. “Não adianta uma prefeitura ou governo estadual fazer coleta seletiva sem oferecer condições adequadas nem ter cooperativas de catadores funcionando com boa estrutura”, diz.
O professor de Engenharia Sanitária da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Paulo Modesto lembra que o problema dos aterros, propriamente, é fácil de resolver, contanto que sejam escolhidas áreas em que se levem em conta o meio físico (solo, água e ar), a fauna e flora da região, uma distância considerável de recursos hídricos e o volume e constituição dos resíduos a serem depositados, para que se evite qualquer tipo de contaminação de águas subterrâneas e lençóis freáticos.
Solução ou poluição?
A opção pelos incineradores tem também seus poréns. Esses equipamentos reduzem o volume do lixo em até 85% do total. Para muitos técnicos, é possível haver queima controlada, com o uso de filtros para evitar a poluição da atmosfera. Mas a polêmica é grande em torno do assunto, já que o custo de implantação é alto e há dúvidas entre ambientalistas quanto à capacidade dos sistemas de filtragem de deter a geração de gases tóxicos. Por conta disso, há resistências por parte de movimentos em vários municípios.
Em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, até o fim do ano passado estava prevista a construção do que seria a primeira usina de incineração de lixo doméstico do Brasil, numa estrutura programada para ocupar a área do antigo lixão do Alvarenga, próxima à Represa Billings – um dos mais importantes reservatórios da região metropolitana. “Com a política nacional, antes de qualquer iniciativa terá de ser provada a viabilidade técnica, ambiental e econômica de um empreendimento desse porte – exigências que, antes, eram menores”, ressalta Sérgio Gonçalves, do MMA.
A ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira, afirmou no início de fevereiro, num encontro em São Paulo, que vai procurar todas as áreas envolvidas para negociar a política e viabilizar as parcerias necessárias. “Existe a dificuldade de articular as várias posturas, nas políticas públicas, sobre essa ideia de sustentabilidade. Há algumas muito conservadoras. Graças à democracia, recepcionamos essa diversidade de pensamento, mas dá trabalho negociar e absorver”, reconhece.
A população, preocupada com o impacto ambiental, também tem se manifestado em torno do tema. Em Pernambuco, o Fórum Estadual Lixo e Cidadania (Flic) conseguiu impedir o andamento de proposta para a instalação de um incinerador em Cabo de Santo Agostinho, para tratar o lixo produzido em Recife. De acordo com integrantes do Flic, a incineração, além de ser a solução de tratamento dos resíduos sólidos mais cara existente no mundo, contribui para agravar o problema das mudanças climáticas. O governo de Pernambuco já sancionou uma lei que se adequa às regras da nova política, mas mobilizações como a do Flic têm crescido em todas as regiões.
Utilidade pública
Um segmento importante da economia tira do lixo e dos resíduos não recolhidos por serviços públicos de coleta oportunidades de trabalho e renda. Os catadores formam uma população estimada em 800 mil pessoas. O pernambucano Cícero Pereira da Silva, morador de Brasília, começou a reciclar desde que chegou à capital federal, há 11 anos. “Vim para procurar emprego e, quando soube como o pessoal trabalha, me identifiquei”, afirma. Cícero destaca a disponibilidade de horário de seu trabalho. Ele começa todos os dias na usina de lixo por volta das 7 da manhã e sai às 15h15, “com o sol ainda quente”. Eva Barros Monte, catadora há três anos, concorda. “Num outro emprego, talvez não pudesse ficar com meus filhos”, ressalta ela, mãe de duas crianças.
“Muitos acham melhor separar lixo que permanecer em empregos que têm horários rígidos, mas isso depende muito do período do ano e da qualidade das vagas oferecidas pelo mercado. Hoje mesmo eu soube de um monte de gente que mudou para empregos com carteira assinada, mas não é o que acontece sempre”, diz Alessandra Alves, diretora da cooperativa de catadores que atua numa usina do Lago Norte, em Brasília. Segundo ela, catadora há 12 anos, com a estruturação da profissão o trabalho ficou mais fácil. “Antes vivíamos nos lixões e só tínhamos essa opção. Hoje, não. Estamos juntos, seja em usinas ou em cooperativas, e isso fortalece nossa atividade.”
O Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) defende a remuneração da categoria, por parte das prefeituras, pela coleta e separação do lixo, além da oferta de cursos de capacitação para aprimorar o trabalho. Apenas quatro municípios brasileiros têm autogestão das cooperativas e pagamento pelos seus serviços de coleta: Diadema, Biritiba Mirim, Arujá (em SP) e Belo Horizonte. “É preciso mostrar o outro lado dessa atividade, uma vez que os catadores são peça importante da destinação final do lixo”, diz Cícero Lacerda, chefe da usina de tratamento de lixo do Distrito Federal.
E a mão de obra não se resume à coleta. Como observa Clara Ednar Cardoso Pereira, que vive da separação do lixo há nove anos, as pessoas e condomínios não ajudam tanto como se pensa. “O catador é que tem de meter a mão na massa e separar o que presta.”