“O Brasil não está vulnerável”
O Brasil de hoje não é um caso típico de país vulnerável a ataques especulativos.” Quem afirma é Paul Krugman, Prêmio Nobel de 2008, colunista de CartaCapital e um dos mais brilhantes economistas em atividade. Na terça-feira 18, Krugman fará a abertura, em São Paulo, do Fórum Brasil, evento organizado por esta revista com o objetivo de discutir temas cruciais sobre o futuro do País, da Justiça à infraestrutura. Da capital paulista, o professor de Princeton segue por um tour pela América do Sul. Além de refutar o relatório do Fed, o banco central norte-americano, que incluiu o Brasil entre as economias mais frágeis entre os emergentes, Krugman elogia a reforma do sistema de saúde promovido pelo governo Barack Obama e enxerga um cenário “menos catastrófico” na Europa, à exceção de Portugal. “Quando olho para Lisboa, vejo as marcas de um longo processo de ruína fisscal”.
CartaCapital: O anunciado estouro da bolha dos países emergentes, Brasil incluído, faz sentido?
Paul Krugman: O caso do Brasil é particularíssimo. O país da era Lula emergiu muito mais forte do que se poderia imaginar. Mas o fluxo de dinheiro desde então foi intenso demais, o real passou por um processo de supervalorização e agora temos uma onda, não exatamente de fuga de capitais, mas de diminuição significativa da entrada de recursos. Mas esta é, em geral, a natureza do investimento maciço em mercados emergentes: busca-se um retorno rápido do investimento, até ocorrer uma queda de confiança, pelas mais variadas e subjetivas razões. Mas esta não é uma crise como aquelas que assolaram os mercados emergentes nas últimas décadas.
CC: Não se corre o risco de uma repetição de 1998 ou mesmo 2002 no Brasil?
PK: Não, de forma alguma. Não vejo o Brasil de 2014 em meio a um cenário desastroso. No fim dos anos 1990, vivemos o que acreditávamos ser uma crise financeira global. O que, convenhamos, depois de atravessarmos 2008, parece café-pequeno. Mas é importante lembrar que, mesmo quando o Brasil se tornou o próximo alvo da crise e viveu a inevitável desvalorização do real, muitos colegas meus tinham certeza absoluta de que estavam diante de mais uma catástrofe econômica, que não aconteceu. O Brasil passou por um momento difícil, mas provou não ser vulnerável como se imaginava. E, uma década e meia depois, o País é ainda menos vulnerável. Não há um déficit gigantesco em moeda estrangeira, a situação fiscal é aceitável e a inflação não é significativamente alta. O Brasil de hoje não é, definitivamente, um caso típico de país vulnerável a ataques especulativos.
CC: Turquia, Indonésia, Índia, África do Sul e Brasil seriam, segundo o Fed, os países emergentes mais vulneráveis à retirada dos estímulos à economia americana. É um equívoco?
PK: Insisto que não há, neste momento, assim como nos anos 1990, altos níveis de endividamento do Brasil em moeda estrangeira. Também não há endividamento significativo do setor privado. O Brasil, que mostrou solidez mesmo durante a fuga de capitais de 1999, não deveria ser, neste momento, de forma alguma, classificado como uma economia vulnerável. É preciso levar em conta, obviamente, o fato de o País ter tido a maior valorização de moeda durante o período da crise financeira global. Mas isso é apenas uma prova de que a economia brasileira tem capacidade de navegar nos altos e baixos das flutuações monetárias, com eventuais solavancos. Simplesmente, não consigo concordar com a análise do Fed. Talvez a Turquia seja, dessa lista, a mais próxima do cenário daquela época, mas não há grau de comparação com o Brasil.
CC: O senhor já afirmou que considera uma bobagem o termo BRIC, sigla que denomina o bloco composto por Brasil, China, Russia e Índia.
PK: BRIC é, para mim, a pior sigla de todo o alfabeto financeiro. O que há em comum entre uma democracia estável como o Brasil, exportadora de matéria-prima, e, de forma menos global, de produtos manufaturados, um estado corrupto como a Rússia, baseado na exportação de energia, e dois universos singulares, únicos, China e Índia? Apenas o fato de serem países continentais. É absolutamente insano do ponto de vista intelectual acreditar que eles podem ser incluídos em um mesmo escaninho. O Brasil sofre duplamente por conta deste tipo de pensamento reducionista. Há uma ideia, errônea, de que o Brasil é apenas mais uma economia latino-americana.
CC: Seus colegas Dani Rodrick e Arvind Subramanian escreveram artigo sobre a “narrativa de vitimização” de governos de mercados emergentes, incluído o Brasil, apressados em culpar a política monetária dos Estados Unidos como principal responsável pelas dificuldades enfrentadas. O senhor concorda?
PK: Foram os senhores mesmos, brasileiros, que criaram este termo “guerra cambial”. E, francamente, isso é uma bobagem. Não foi a injeção de estímulo na economia que originou o fluxo de capitais para o Brasil, e sim a depressão econômica nas grandes economias do Norte. Mesmo se o Fed acreditasse que a estabilização de economias emergentes era uma de suas tarefas, a mera sugestão de que ele fosse apertar os cintos, naquele momento, vá lá, para prevenir uma exuberância momentânea no Brasil, é, no mínimo, algo muito distante do razoável. Com o aumento progressivo de postos de trabalho e uma diminuição do índice de desemprego, o sentido das injeções do Fed se desfaz no ar. Há um consenso quanto a isso. É algo absolutamente previsível, não há qualquer surpresa. O que acontece é que os juros estupidamente baixos nos EUA só fazem sentido se você acreditar na necessidade de uma estagnação perpétua, ou em uma depressão longuíssima.
CC: Como o senhor avalia a condução da economia brasileira durante o governo Dilma?
PK: Eu me preocupo mais com o que Brasília não deveria fazer neste momento. Por exemplo, não deveria reagir com mão muito pesada à desvalorização do real. Quando se pensa em termos monetários, há dois tipos de países. Um deles é a Grã-Bretanha de 1992. Se a moeda se desvaloriza, há aumento imediato de competição e expansão econômica. Outro é a Argentina de 2001, que, muito por conta do tamanho da dívida em moeda estrangeira, vê a desvalorização afetar de forma intensa o setor privado e a economia se contrai. O Brasil de hoje é mais próximo da Grã-Bretanha de 1992. Brasília deve se preocupar um pouco com a possibilidade de crescimento da inflação, mas o maior perigo é o Banco Central apertar demais os cintos em um esforço para proteger o real. No mais, a verdade é que os investidores não têm mais o mesmo entusiasmo de antes em relação ao Brasil. Assim são as marés do mercado.
CC: A diminuição do ritmo de crescimento chinês acende o sinal amarelo para a economia brasileira?
PK: Sim. Neste ano o Brasil sofreu com uma safra de café muito aquém do esperado, apenas parcialmente compensada pelo aumento do preço do produto. Haverá um inevitável choque de comércio com a desaceleração da China e a diminuição do valor das matérias-primas. Até pouco tempo atrás a onda de comércio era favorável ao Brasil, e nos próximos anos muito provavelmente não o será.
CC: Qual a sua opinião sobre a ênfase dada por Brasília ao comércio Sul-Sul e no Mercosul e à decisão de não seguir adiante com a Área de Livre Comércio das Américas?
PK: As duas maiores economias da América Latina partiram para caminhos bem diversos, com o México no Nafta e o Brasil no comando do Mercosul. Há uma questão geográfica, tão óbvia quanto determinante, que diminui o real poder de decisão política. O México transformou-se intensamente, não é mais um mero exportador de petróleo, integrou-se de forma decisiva ao sistema de produção americano. Mas o Nafta é apenas uma peça de um quebra-cabeça que inclui uma fronteira extensa e milhares de trabalhadores mexicanos nos Estados Unidos. O Brasil jamais será mais integrado ao sistema americano do que ao da comunidade europeia, por exemplo. Não havia uma oportunidade real para o Brasil neste caso. E a utopia da Alca, se alcançada, jamais se traduziria em um Nafta expandido. O Nafta é mais do que uma iniciativa de comércio sem taxações específicas, é um investimento geopolítico de interdependência entre países fronteiriços.
CC: O senhor afirmou que os dois primeiros anos da administração Obama fizeram dele o mais importante presidente dos Estados Unidos desde Ronald Reagan.
PK: Reagan foi um presidente importantíssimo, e não sou um fã do que resultou, política e economicamente, de seus oito anos de mandato, mas a dimensão do que foi feito naquele período é inegável. Obama realizou algo extremamente grandioso, a reforma da saúde pública, e um bocado de outras mudanças importantes. Não havia, até o Obamacare, a garantia de atendimento médico à população. O mecanismo criado por Washington é inábil e confuso, mas, politicamente, a opção de um sistema amplo de saúde inexistia. Conseguimos uma reforma que cobrirá, eventualmente, até 95% da população. Foi finalmente estabelecido o princípio de que a saúde dos cidadãos é um direito garantido pelo governo, ideal pelo qual a esquerda lutou nos últimos 70 anos. Quando Obama deixar o governo, essa conquista será politicamente irreversível.
CC: O senhor tem criticado a tentativa da direita de apresentar o Obamacare como um assalto ao bolso dos cidadãos comuns. O programa é um novo imposto e um mecanismo de transferência de renda?
PK: Sim, o Obamacare é tudo isso. Mas a oposição ao programa vai além de qualquer lógica relacionada às suas consequências econômicas. Quase todos os estados comandados por republicanos recusaram, durante o processo de implementação do novo plano, o auxílio federal na expansão do Medicaid, o programa de saúde pública voltado para os mais pobres, que nada mais seria do que dinheiro limpo vindo de Washington. São governadores prejudicando sua economia, seu orçamento, apenas com o objetivo de negar o acesso à saúde aos cidadãos menos ricos, uma questão puramente ideológica.
CC: O senhor acredita que Obama será um ator político importante em sua sucessão?
PK: Não. Hoje o campo de candidatos viáveis no Partido Democrata tem um único nome: Hillary Clinton. Se ela quiser se candidatar, não há disputa. Obama não é um presidente popular, não é amado por seus correligionários. Eles idolatram Bill Clinton, curiosamente, muito mais hoje do que quando ele era presidente.
CC: A estratégia democrata para novembro passa pela defesa do aumento do salário mínimo, uma bandeira da esquerda desde 2008. A elevação conduzirá à redução de postos de trabalho, como argumenta a oposição?
PK: Ainda que se acredite nos números oferecidos pelo Congressional Budget Office, agência federal do poder legislativo americano, e há enorme margem para interpretação, não é plausível o cenário de desastre econômico pintado pelos republicanos. Enquanto os democratas queriam explicar macroeconomia para o povo, os republicanos ofereceram lógica muito mais simplória, de compreensão imediata: se aperto os cintos, o governo deveria fazer o mesmo. E não é bem assim. A única exceção é justamente no caso do salário mínimo. Todas as pesquisas mostram que o raciocínio da maioria, aqui, é o de que quem trabalha duro deve receber um pouco mais. Não acho que a pregação republicana de que o aumento significará corte de postos de trabalho, uma premissa falsa, será comprada pelos eleitores. Aqui, pela primeira vez em muitos anos, os democratas encontraram uma narrativa apoiada pela maioria absoluta dos americanos.
CC: Como o senhor avalia a maneira do governo Obama de lidar com a crise financeira global?
PK: A economia seguiu em depressão, o índice de desemprego seguiu alto, a recuperação econômica foi menos forte. Quem sabe em uma década a percepção pública mude, mas o índice de desemprego hoje segue muito maior do que o prometido pela Casa Branca, o que, para muita gente séria, significa, simplesmente, que o estímulo fracassou.
CC: Algo muda no Fed com a saída de Ben Bernanke e a entrada de Janet Yellen?
PK: Não creio. É mais do mesmo. Talvez Yellen seja menos agressiva. Bernanke, no trato pessoal, é muito mais moderado do que permite supor a sua faceta pública. Ele precisou se mostrar mais duro no comando do Fed para conquistar certo consenso no mercado. E a verdade é que uma mudança significativa na direção do Fed só se justificaria se o cenário fosse muito mais negativo, mas não é o caso. Não vejo espaço para uma mudança no ideal inflacionário ou para uma meta de crescimento maior do PIB. O que veremos é continuidade.
CC: O senhor tem sido um crítico constante das políticas de austeridade fiscal. Como vê a situação da Comunidade Europeia neste momento?
PK: As políticas de austeridade fiscal alimentaram a depressão econômica. Mas, apesar delas, tivemos duas surpresas favoráveis: a coesão política dos países da Comunidade Europeia e a ação decisiva do Banco Central Europeu. O comprometimento dos países de permanecer na Zona do Euro foi muito mais forte do que eu previ, com manutenção das regras do jogo mesmo com índices de desemprego devastadores de dois dígitos, como os da Espanha. E boa parte dos problemas de liquidez foi reduzida nos últimos dois anos. Portugal ainda vive o pior dos mundos, mas Espanha e Itália já respiram. Os paí-
ses mediterrâneos, lentamente, voltam a se tornar mais competitivos. Até mesmo a Grécia começa a se recuperar, a se reinventar como um polo econômico turístico a preços promocionais. É um tanto quanto deprimente, mas o recomeço se dará com pacotes turísticos às Ilhas Gregas a preços módicos para estrangeiros.
CC: O senhor está, então, otimista?
PK: Bem, no sentido, novamente, de que o quadro poderia ser muito pior. Hoje, comemora-se a possibilidade de um crescimento de 1,2% do PIB na Zona do Euro, o que é ridículo. Se considerarmos março de 2014, desde 2007 o crescimento econômico da Europa é menor do que o de 1929 a 1936, no auge da Grande Depressão. E o custo humano da atual crise europeia foi imenso. Mas poderia ter sido muito, muito pior. Quem ainda me assusta é Portugal. A partida de jovens trabalhadores para fora do país, para o Brasil inclusive, é ainda mais significativa do que a de décadas atrás. Hoje, quando olho para Lisboa, vejo as marcas de um longo processo de ruína fiscal, me lembra muito a região montanhosa dos Apalaches aqui nos Estados Unidos. Portugal é atualmente a tradução mais exata da armadilha do euro e, no entanto, não vejo um grande movimento de abandono luso da federação europeia. Não vejo no futuro uma sequência de secessões na Comunidade Europeia. Mas não é improvável um cenário de uma Europa Ocidental com baixo crescimento econômico por décadas a fio.
CartaCapital: O anunciado estouro da bolha dos países emergentes, Brasil incluído, faz sentido?
Paul Krugman: O caso do Brasil é particularíssimo. O país da era Lula emergiu muito mais forte do que se poderia imaginar. Mas o fluxo de dinheiro desde então foi intenso demais, o real passou por um processo de supervalorização e agora temos uma onda, não exatamente de fuga de capitais, mas de diminuição significativa da entrada de recursos. Mas esta é, em geral, a natureza do investimento maciço em mercados emergentes: busca-se um retorno rápido do investimento, até ocorrer uma queda de confiança, pelas mais variadas e subjetivas razões. Mas esta não é uma crise como aquelas que assolaram os mercados emergentes nas últimas décadas.
CC: Não se corre o risco de uma repetição de 1998 ou mesmo 2002 no Brasil?
PK: Não, de forma alguma. Não vejo o Brasil de 2014 em meio a um cenário desastroso. No fim dos anos 1990, vivemos o que acreditávamos ser uma crise financeira global. O que, convenhamos, depois de atravessarmos 2008, parece café-pequeno. Mas é importante lembrar que, mesmo quando o Brasil se tornou o próximo alvo da crise e viveu a inevitável desvalorização do real, muitos colegas meus tinham certeza absoluta de que estavam diante de mais uma catástrofe econômica, que não aconteceu. O Brasil passou por um momento difícil, mas provou não ser vulnerável como se imaginava. E, uma década e meia depois, o País é ainda menos vulnerável. Não há um déficit gigantesco em moeda estrangeira, a situação fiscal é aceitável e a inflação não é significativamente alta. O Brasil de hoje não é, definitivamente, um caso típico de país vulnerável a ataques especulativos.
CC: Turquia, Indonésia, Índia, África do Sul e Brasil seriam, segundo o Fed, os países emergentes mais vulneráveis à retirada dos estímulos à economia americana. É um equívoco?
PK: Insisto que não há, neste momento, assim como nos anos 1990, altos níveis de endividamento do Brasil em moeda estrangeira. Também não há endividamento significativo do setor privado. O Brasil, que mostrou solidez mesmo durante a fuga de capitais de 1999, não deveria ser, neste momento, de forma alguma, classificado como uma economia vulnerável. É preciso levar em conta, obviamente, o fato de o País ter tido a maior valorização de moeda durante o período da crise financeira global. Mas isso é apenas uma prova de que a economia brasileira tem capacidade de navegar nos altos e baixos das flutuações monetárias, com eventuais solavancos. Simplesmente, não consigo concordar com a análise do Fed. Talvez a Turquia seja, dessa lista, a mais próxima do cenário daquela época, mas não há grau de comparação com o Brasil.
CC: O senhor já afirmou que considera uma bobagem o termo BRIC, sigla que denomina o bloco composto por Brasil, China, Russia e Índia.
PK: BRIC é, para mim, a pior sigla de todo o alfabeto financeiro. O que há em comum entre uma democracia estável como o Brasil, exportadora de matéria-prima, e, de forma menos global, de produtos manufaturados, um estado corrupto como a Rússia, baseado na exportação de energia, e dois universos singulares, únicos, China e Índia? Apenas o fato de serem países continentais. É absolutamente insano do ponto de vista intelectual acreditar que eles podem ser incluídos em um mesmo escaninho. O Brasil sofre duplamente por conta deste tipo de pensamento reducionista. Há uma ideia, errônea, de que o Brasil é apenas mais uma economia latino-americana.
CC: Seus colegas Dani Rodrick e Arvind Subramanian escreveram artigo sobre a “narrativa de vitimização” de governos de mercados emergentes, incluído o Brasil, apressados em culpar a política monetária dos Estados Unidos como principal responsável pelas dificuldades enfrentadas. O senhor concorda?
PK: Foram os senhores mesmos, brasileiros, que criaram este termo “guerra cambial”. E, francamente, isso é uma bobagem. Não foi a injeção de estímulo na economia que originou o fluxo de capitais para o Brasil, e sim a depressão econômica nas grandes economias do Norte. Mesmo se o Fed acreditasse que a estabilização de economias emergentes era uma de suas tarefas, a mera sugestão de que ele fosse apertar os cintos, naquele momento, vá lá, para prevenir uma exuberância momentânea no Brasil, é, no mínimo, algo muito distante do razoável. Com o aumento progressivo de postos de trabalho e uma diminuição do índice de desemprego, o sentido das injeções do Fed se desfaz no ar. Há um consenso quanto a isso. É algo absolutamente previsível, não há qualquer surpresa. O que acontece é que os juros estupidamente baixos nos EUA só fazem sentido se você acreditar na necessidade de uma estagnação perpétua, ou em uma depressão longuíssima.
CC: Como o senhor avalia a condução da economia brasileira durante o governo Dilma?
PK: Eu me preocupo mais com o que Brasília não deveria fazer neste momento. Por exemplo, não deveria reagir com mão muito pesada à desvalorização do real. Quando se pensa em termos monetários, há dois tipos de países. Um deles é a Grã-Bretanha de 1992. Se a moeda se desvaloriza, há aumento imediato de competição e expansão econômica. Outro é a Argentina de 2001, que, muito por conta do tamanho da dívida em moeda estrangeira, vê a desvalorização afetar de forma intensa o setor privado e a economia se contrai. O Brasil de hoje é mais próximo da Grã-Bretanha de 1992. Brasília deve se preocupar um pouco com a possibilidade de crescimento da inflação, mas o maior perigo é o Banco Central apertar demais os cintos em um esforço para proteger o real. No mais, a verdade é que os investidores não têm mais o mesmo entusiasmo de antes em relação ao Brasil. Assim são as marés do mercado.
CC: A diminuição do ritmo de crescimento chinês acende o sinal amarelo para a economia brasileira?
PK: Sim. Neste ano o Brasil sofreu com uma safra de café muito aquém do esperado, apenas parcialmente compensada pelo aumento do preço do produto. Haverá um inevitável choque de comércio com a desaceleração da China e a diminuição do valor das matérias-primas. Até pouco tempo atrás a onda de comércio era favorável ao Brasil, e nos próximos anos muito provavelmente não o será.
CC: Qual a sua opinião sobre a ênfase dada por Brasília ao comércio Sul-Sul e no Mercosul e à decisão de não seguir adiante com a Área de Livre Comércio das Américas?
PK: As duas maiores economias da América Latina partiram para caminhos bem diversos, com o México no Nafta e o Brasil no comando do Mercosul. Há uma questão geográfica, tão óbvia quanto determinante, que diminui o real poder de decisão política. O México transformou-se intensamente, não é mais um mero exportador de petróleo, integrou-se de forma decisiva ao sistema de produção americano. Mas o Nafta é apenas uma peça de um quebra-cabeça que inclui uma fronteira extensa e milhares de trabalhadores mexicanos nos Estados Unidos. O Brasil jamais será mais integrado ao sistema americano do que ao da comunidade europeia, por exemplo. Não havia uma oportunidade real para o Brasil neste caso. E a utopia da Alca, se alcançada, jamais se traduziria em um Nafta expandido. O Nafta é mais do que uma iniciativa de comércio sem taxações específicas, é um investimento geopolítico de interdependência entre países fronteiriços.
CC: O senhor afirmou que os dois primeiros anos da administração Obama fizeram dele o mais importante presidente dos Estados Unidos desde Ronald Reagan.
PK: Reagan foi um presidente importantíssimo, e não sou um fã do que resultou, política e economicamente, de seus oito anos de mandato, mas a dimensão do que foi feito naquele período é inegável. Obama realizou algo extremamente grandioso, a reforma da saúde pública, e um bocado de outras mudanças importantes. Não havia, até o Obamacare, a garantia de atendimento médico à população. O mecanismo criado por Washington é inábil e confuso, mas, politicamente, a opção de um sistema amplo de saúde inexistia. Conseguimos uma reforma que cobrirá, eventualmente, até 95% da população. Foi finalmente estabelecido o princípio de que a saúde dos cidadãos é um direito garantido pelo governo, ideal pelo qual a esquerda lutou nos últimos 70 anos. Quando Obama deixar o governo, essa conquista será politicamente irreversível.
CC: O senhor tem criticado a tentativa da direita de apresentar o Obamacare como um assalto ao bolso dos cidadãos comuns. O programa é um novo imposto e um mecanismo de transferência de renda?
PK: Sim, o Obamacare é tudo isso. Mas a oposição ao programa vai além de qualquer lógica relacionada às suas consequências econômicas. Quase todos os estados comandados por republicanos recusaram, durante o processo de implementação do novo plano, o auxílio federal na expansão do Medicaid, o programa de saúde pública voltado para os mais pobres, que nada mais seria do que dinheiro limpo vindo de Washington. São governadores prejudicando sua economia, seu orçamento, apenas com o objetivo de negar o acesso à saúde aos cidadãos menos ricos, uma questão puramente ideológica.
CC: O senhor acredita que Obama será um ator político importante em sua sucessão?
PK: Não. Hoje o campo de candidatos viáveis no Partido Democrata tem um único nome: Hillary Clinton. Se ela quiser se candidatar, não há disputa. Obama não é um presidente popular, não é amado por seus correligionários. Eles idolatram Bill Clinton, curiosamente, muito mais hoje do que quando ele era presidente.
CC: A estratégia democrata para novembro passa pela defesa do aumento do salário mínimo, uma bandeira da esquerda desde 2008. A elevação conduzirá à redução de postos de trabalho, como argumenta a oposição?
PK: Ainda que se acredite nos números oferecidos pelo Congressional Budget Office, agência federal do poder legislativo americano, e há enorme margem para interpretação, não é plausível o cenário de desastre econômico pintado pelos republicanos. Enquanto os democratas queriam explicar macroeconomia para o povo, os republicanos ofereceram lógica muito mais simplória, de compreensão imediata: se aperto os cintos, o governo deveria fazer o mesmo. E não é bem assim. A única exceção é justamente no caso do salário mínimo. Todas as pesquisas mostram que o raciocínio da maioria, aqui, é o de que quem trabalha duro deve receber um pouco mais. Não acho que a pregação republicana de que o aumento significará corte de postos de trabalho, uma premissa falsa, será comprada pelos eleitores. Aqui, pela primeira vez em muitos anos, os democratas encontraram uma narrativa apoiada pela maioria absoluta dos americanos.
CC: Como o senhor avalia a maneira do governo Obama de lidar com a crise financeira global?
PK: A economia seguiu em depressão, o índice de desemprego seguiu alto, a recuperação econômica foi menos forte. Quem sabe em uma década a percepção pública mude, mas o índice de desemprego hoje segue muito maior do que o prometido pela Casa Branca, o que, para muita gente séria, significa, simplesmente, que o estímulo fracassou.
CC: Algo muda no Fed com a saída de Ben Bernanke e a entrada de Janet Yellen?
PK: Não creio. É mais do mesmo. Talvez Yellen seja menos agressiva. Bernanke, no trato pessoal, é muito mais moderado do que permite supor a sua faceta pública. Ele precisou se mostrar mais duro no comando do Fed para conquistar certo consenso no mercado. E a verdade é que uma mudança significativa na direção do Fed só se justificaria se o cenário fosse muito mais negativo, mas não é o caso. Não vejo espaço para uma mudança no ideal inflacionário ou para uma meta de crescimento maior do PIB. O que veremos é continuidade.
CC: O senhor tem sido um crítico constante das políticas de austeridade fiscal. Como vê a situação da Comunidade Europeia neste momento?
CC: O senhor está, então, otimista?
PK: Bem, no sentido, novamente, de que o quadro poderia ser muito pior. Hoje, comemora-se a possibilidade de um crescimento de 1,2% do PIB na Zona do Euro, o que é ridículo. Se considerarmos março de 2014, desde 2007 o crescimento econômico da Europa é menor do que o de 1929 a 1936, no auge da Grande Depressão. E o custo humano da atual crise europeia foi imenso. Mas poderia ter sido muito, muito pior. Quem ainda me assusta é Portugal. A partida de jovens trabalhadores para fora do país, para o Brasil inclusive, é ainda mais significativa do que a de décadas atrás. Hoje, quando olho para Lisboa, vejo as marcas de um longo processo de ruína fiscal, me lembra muito a região montanhosa dos Apalaches aqui nos Estados Unidos. Portugal é atualmente a tradução mais exata da armadilha do euro e, no entanto, não vejo um grande movimento de abandono luso da federação europeia. Não vejo no futuro uma sequência de secessões na Comunidade Europeia. Mas não é improvável um cenário de uma Europa Ocidental com baixo crescimento econômico por décadas a fio.