Manifestações preconceituosas persistem, viram agressão física e preocupam
Agressões físicas a homossexuais, insultos verbais a nordestinos, ameaças a um senador negro: se, durante a campanha eleitoral, o Brasil deixou aflorar seu lado mais arcaico, novembro chega ao fim com a constatação de que as demonstrações mais retrógradas da sociedade não estão dispostas a deixar o mapa. Pior que isso, têm crescido.
Os sinais de intolerância estão demonstrados nas falas e nas atitudes de alguns segmentos. Se não é verdadeiro dizer que esses preconceitos foram criados nas últimas semanas, é justo afirmar que aquilo que parecia estar morto ou confinado veio à tona por meio da internet, primeiro, e logo se transferiu ao ‘mundo real’. O mês de novembro começou com um movimento de ódio regional aos nordestinos por meio da rede social Twitter.
“A internet deve ser um meio de comunicação, e não um meio de incentivo à discriminação de alguma natureza. É preciso ter alguma legislação neste sentido”, cobra Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transexuais (ABGLT). No caso dos homossexuais, as mensagens preconceituosas da virtualidade logo se transformaram em agressões físicas. No Rio de Janeiro, um jovem foi baleado na barriga por policiais militares após a Parada Gay de domingo (18). Poucos dias antes, na Avenida Paulista, região central de São Paulo, quatro jovens foram agredidos pela mesma motivação: homofobia.
No momento em que deveria trabalhar pelo debate aprofundado e sério dessas questões, o Congresso dá sinais contraditórios. Se, por um lado, há parlamentares que manifestam repúdio às agressões, por outro há os que vejam na homossexualidade um problema social. O deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), conhecido defensor de pautas conservadoras, expôs em entrevista à TV Câmara na última semana sua tese sobre a necessidade de dar umas palmadas nas crianças: “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, aí leva um coro, ele muda o comportamento dele. Olha, eu vejo muita gente por aí dizendo: ainda bem que eu levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem.”
Uma fala que expõe a dificuldade em se aprovar o Projeto de Lei 122, de 2006, que prevê a punição, com prisão, do crime de homofobia. “Infelizmente, é um debate baseado em conceitos religiosos. É difícil porque não se convence uma pessoa que não demonstra o mínimo de capacidade de raciocínio”, lamenta Reis sobre o debate ora em curso no Senado a respeito do PL.
Em meio a essa discussão, segmentos conservadores e colunistas apelidaram o texto de “AI-5 gay”, passando a dizer que se trata de uma discriminação aos que são contra a homossexualidade. O reverendo Augustus Nicodemus Gomes Lopes, chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie, jogou mais lenha na fogueira ao assinar texto em que afirma que “tal lei interfere diretamente na liberdade e na missão das igrejas de todas orientações de falarem, pregarem e ensinarem sobre a conduta e o comportamento ético de todos, inclusive dos homossexuais.”
O deputado federal Iran Barbosa (foto acima), do PT de Sergipe, entende que aqueles que criticam o PL 122 não se deram ao trabalho de ler o projeto, que visa a coibir a homofobia da mesma maneira que se fez com o racismo. “A sociedade capitalista em que vivemos se sustenta numa padronização, e tudo aquilo que foge ao padrão heterossexual, masculino, cristão, que é o padrão que predomina na cabeça das pessoas, sofre discriminação.”
Encontros
Como alerta o parlamentar, os preconceitos se comunicam. Machismo, homofobia, racismo e intolerância regional se encontram em diversas falas. Em seu perfil no Twitter, o usuário PSYCL0N apoia-se no anonimato para ofender mulheres (“um ser naturalmente esquerdista, que azeda a água e o leite”), negros (“macacos”), homossexuais (“escória do planeta”) e nordestinos (vistos como entrave ao país em diversas mensagens).
Maria do Socorro Sousa Braga, cientista política da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), entende que há setores da sociedade incomodados com a ampliação, nos últimos anos, da participação democrática. “Isso tem gerado diferentes respostas, e essa da agressão é uma que a gente tem de bater forte porque não faz sentido ter uma postura dessas dentro de uma sociedade democrática.”
Há uma linha bastante tênue entre a pauta conservadora e a atitude preconceituosa, que se rompeu em vários casos. De maneira geral, o apelo às liberdades individuais aparece como uma pauta desses grupos, mas há quem confunda liberdade com a possibilidade de romper os limites da lei. O caso mais claro na recente onda de preconceitos foi visto logo após a vitória de Dilma Rousseff (PT), em que explodiram nas redes sociais as mensagens agressivas a nordestinos. A errônea leitura de que Dilma se elegeu graças ao Bolsa Família, difundida por parte da oposição e da imprensa, incentivou a que viesse à tona um dos mais claros preconceitos da sociedade brasileira do século XX – e que não parecia ter espaço no século XXI.
A seccional de Pernambuco da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com notícia-crime contra aqueles que utilizaram a internet para promover o preconceito. Inicialmente, a queixa foi apresentada contra uma estudante de Direito que havia sugerido afogar os nordestinos, mas depois a OAB conseguiu identificar outros autores de mensagens e entregou uma relação completa ao Ministério Público Federal em São Paulo. Além das milhares de manifestações contrárias à postura da estudante, houve quem defendesse a atitude sob o argumento de que não se pode cercear a liberdade de manifestação. O presidente da OAB de Pernambuco, Henrique Mariano, discorda: “Essa liberdade não é absoluta, ela é relativa. No momento em que posta uma mensagem incitando a prática de homicídio, comete um crime.”
Nas páginas da Folha de S. Paulo, o jornalista Leandro Narloch assinou artigo em que defende alguns dos argumentos que, em tese, ‘embasam’ a tese daqueles que decidiram utilizar o Twitter para manifestar diferenças em relação ao Nordeste. Ele entende que há uma enorme fatia da população que não sabe votar e, portanto, deve abster-se dessa decisão. “Nutro um declarado e saboroso preconceito contra quem insiste em pregar o orgulho de sua origem”, conclui, em seu texto.
Abrir as portas ao preconceito, na avaliação de Iran Barbosa, é um convite à violência homofóbica, xenofóbica ou racista. O deputado pondera que a sociedade brasileira precisa estar atenta para que sua formação plural seja um sinal de aceitação, e não de rejeição da diversidade. “Os nordestinos tiveram mesmo papel importante na eleição de Dilma, mas não porque votamos pela barriga ou pela fome, mas pela visão de que as políticas públicas que têm que ser mantidas em nosso país são as que priorizam os setores que realmente precisam dessas políticas.”
Exemplos
Embora a punição legal a agressores verbais e físicos não vá resolver o preconceito, ao menos emite um sinal claro à sociedade de que ele não será tolerado, o que, em última instância, evita a disseminação dessas ideias. No caso das agressões recentes a homossexuais, as respostas foram rápidas: foi dada voz de prisão aos três PMs responsáveis pela atitude de intolerância no Rio e estão detidos os cinco jovens que agrediram outros quatro na Paulista. “Temos de respeitar toda livre expressão, sermos democráticos, mas não podemos admitir que uma manifestação seja violenta”, afirma Toni Reis.
Agora, falta punir os responsáveis pelas mensagens intolerantes colocadas na internet. Para o presidente da Ordem em Pernambuco, é fundamental que se aja com celeridade neste caso. “As pessoas precisam entender que a internet não está à margem do ordenamento jurídico brasileiro. Se o Judiciário se manifestar com brevidade e punindo efetivamente essas pessoas, vai servir de paradigma para toda a sociedade brasileira.”