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Postado em: 26/08/2015 - 12h18 | CUT

Crise: pré-sal, Irã e juros azedaram relação com EUA, diz professor da UFABC

Iniciativas brasileiras desagradaram a comunidade financeira internacional. E setores políticos internos, observando os ventos que vinham de fora, acharam que era hora de tentar derrubar Dilma. A opinião é do holandês Giorgio Romano Schutte. Ele veio ao Brasil no início da década de 1990, para fazer intercâmbio com o movimento sindical brasileiro. Aqui constituiu família e continuou estudando, tornando-se doutor em Sociologia e especialista em Economia Política Internacional.

Leitor assíduo da imprensa internacional e de relatórios e análises financeiras, não titubeia ao apontar alguns momentos em que os governos Lula e Dilma contrariaram interesses e produziram azedume na comunidade financeira internacional: a aprovação do marco regulatório do pré-sal, a tentativa brasileira de mediar um acordo nuclear com o Irã e a tentativa de Dilma, em 2012, de baixar a taxa básica de juros.

Enquanto para ele Lula é pé quente, a atual presidente é pé frio. Mas, segundo ele, talvez um dos maiores problemas de Dilma tenha sido a falta de articulação e de diálogo com a sociedade.

Leia trechos da entrevista:

Professor, antigamente, até os anos 1970, 80, era muito comum associarmos crises internas a interesses estrangeiros. Existem interesses estrangeiros por detrás da crise econômica e política que vivemos hoje?

É um assunto que as pessoas têm evitado porque têm receio de cair na ideia de que há um complô internacional. Não é disso que se trata, isso tem que ficar bem claro.

O que se passa na minha cabeça toda a vez que eu penso no que vem acontecendo depois de 2009? Até então, no meio da crise internacional, o Brasil era o queridinho de todo o mundo. Pela primeira vez, o Brasil era visto como solução, e não mais como parte do problema. Entrou para o G-20, estava à frente dos BRICS. E o que acontece em 2010? O Lula, pela primeira vez em oito anos, toma uma medida que vai diretamente contra os interesses internacionais, que foi a mudança do marco regulatório de exploração do petróleo, do pré-sal. O Lula vinha fazendo o governo que havia prometido, atendendo as camadas populares sem contrariar interesses das elites. Já na questão do pré-sal, isso é uma coisa muito grande – embora alguns digam o contrário e tentem fazer uma mistificação. Quando a gente ficou sabendo dos grampos (grampos telefônicos da agência de segurança dos EUA), eram grampos sobre a Dilma e a Petrobrás. Depois se você observar todas as visitas seguintes, da Hillary Clinton, do ministro da Energia americano, houve época que de três em três meses havia uma delegação americana de alto nível no Brasil, e ia direito para o Rio, nem passava por Brasília, tinham mais interesse em falar com a Graça Foster (ex-presidente da Petrobrás) do que com a própria Dilma. Então, quando o Brasil faz uma legislação que praticamente garante o controle total – é o que eu chamaria de uma reestatização moderada –vai contra interesses muito organizados e poderosos.

E isso passou até com certa facilidade no Congresso. Por quê?

É verdade. Porque o Lula estava com 85% de aprovação, porque era o momento em que ele estava com o queijo e a faca na mão. O Lula também tinha legitimidade internacional. Foi uma estratégia muito ousada, especialmente considerando que não houve essa ousadia antes. Então, esse é um ponto. Outra coisa: em que momento o Brasil deixou de ser o país queridinho? Eu tenho clareza que foi no momento em que o Lula inventou de mexer com o Irã. Porque se encontrar com o Ahmadinejad (Mahmoud, presidente iraniano), você não sabe o que isso significa na cabeça dos conservadores dos Estados Unidos, mas nem só de lá. Irã? Bomba? Quem se sente ameaçado imediatamente é Israel. E eles têm um lobby muito forte. Há interesses muito fortes que se sentiram contrariados com essa atitude do Lula.

Mas a intenção do Lula e do embaixador Celso Amorim era justamente evitar que a energia nuclear fosse utilizada para a fabricação da bomba.

Mas na visão de Israel, e mesmo agora, depois do acordo costurado pelo Obama, isso é totalmente inaceitável e eles são contra. Eles dizem que é o mesmo erro que Inglaterra e França cometeram em 1938 com o Hitler. Então isso teve um impacto muito grande. Houve claramente um lobby anti-Brasil. Foi muito mal visto pela diplomacia americana e pelo Congresso.

Olhando em perspectiva agora, você acha que aquela atitude do Brasil foi precipitada, errada, ou não?

Eu tenho dúvidas se o Lula e o Celso Amorim sabiam da reação que aquilo provocaria nos Estados Unidos. Havia certa ilusão, porque existia a carta do Obama pedindo a ajuda do Brasil, a interferência. Mas na cabeça dos Estados Unidos o que era para acontecer era o Lula tentar e não dar certo, pois isso seria mais um argumento para convencer os chineses e os russos para impor as sanções. Agora, o Lula ir lá e conseguir, isso não estava no script.

Achavam que o Lula iria fracassar na tarefa.

E ele devia saber que era essa a ideia. O Brasil, então, antes da crise atual, já deixara de ser só o queridinho. Até então, você pegava a imprensa americana, “The Economist”, “New York Times”, “Financial Times”, só coisa positiva sobre o Brasil. E começa a ter uma abordagem um pouco mais crítica. Tem um monte de coisas pequenas que você vai juntando para entender o clima. Isso azedou a relação. Em 2012, houve o golpe no Paraguai. E a reação da Dilma, muito forte, muito surpreendente, os Estados Unidos imaginaram que o Brasil ia dizer “tudo bem”. Então, com o Paraguai fora do Mercosul, na mesma reunião, foi convidada a Venezuela para integrar o bloco. Isso foi a Dilma que fez (a presidência temporal do Mercosul, naquele momento, pertencia ao Brasil). Isso causou também muito mal estar. E aí veio a denúncia da espionagem. A Dilma disse que não ia mais. Isso vai causando atrito, na área de relações internacionais. Voltando à área econômica. O que acontece em 2010? O Brasil, como eu disse, havia reagido muito bem à crise, e era bem visto por todos.

O Brasil passa a ser visto como exemplo.

Isso. Mas o que acontece depois? Os Estados Unidos, para tentar resolver os problemas deles, inundam o mercado de dólares. Esse dinheiro, o famoso relaxamento monetário (…) significa muito dinheiro disponível. Muito dinheiro veio para cá, o que o Guido Mantega classificou como tsunami financeiro. Mas era dinheiro que vinha atrás de oportunidade de especulação, no curto prazo. Isso valorizou o câmbio. A indústria estava razoável, mas aí você começa a ter problemas na balança comercial. Então a Dilma percebe que não dá mais para conviver com aquela taxa de juros que existia, atraindo dólares e valorizando o câmbio. Então, quando ela começa em 2012 a atacar de maneira muito corajosa a taxa de juros, isso se torna uma coisa que contraria a comunidade financeira internacional. Não é que os banqueiros se juntaram num quarto e decidiram: vamos derrubar a Dilma. Mas o que eu acho é que ela não percebeu que estava comprando briga com gente muito poderosa sem explicar. Ela não explicou o que estava fazendo, como um Dom Quixote sozinha lutando. E o Guido Mantega como um Sancho Pança. Mas ela comprou essa briga. Então a partir de 2012 ela passou a ser vista como uma mulher que quebra contratos. Não dá para confiar nessa mulher.

Alguma liderança da comunidade financeira chegou a se pronunciar claramente contra essa política?

Todos os relatórios financeiros começam a questionar a capacidade do governo. Enfim, a credibilidade do governo. Acompanhando as análises internacionais sobre o Brasil, nota-se que começa um clima muito negativo. Tanto é que ela não consegue resistir, ela teve de voltar atrás. Porque ela começou baixando a taxa Selic, depois atacou o spread dos bancos, e depois tem a questão da eletricidade, da redução das tarifas. Há coisas curiosas. Essa foi a única batalha em que ela teve apoio da Fiesp.

Embora a Fiesp defendesse uma nova rodada de licitações no setor.

Sim, mas na questão da redução das tarifas, apoiou. Isso lá fora era visto como quebra de contrato. Não era, mas foi visto como se fosse. É reflexo de interesses muito objetivos, e não subjetivos, como, por exemplo, querer destruir o PT. Nada disso, se o PT não atrapalhar minha rentabilidade, posso conviver com o PT.

A Dilma poderia ter deixado isso mais claro para a população, não?

É o que eu digo. Tanto na questão do Ahmadinejah, que ainda é da época do Lula, esse mal estar que ficou com os Estados Unidos. No caso do Ahmadinejah, eu não estou dizendo que o Lula e o Celso Amorim não deveriam ter feito, mas eu acho que eles subestimaram o que estavam fazendo: comprando uma briga grande. O que eu acho que talvez eles pudessem ter feito? Conversado mais com os amigos. Tinha interlocução com a França, a Rússia, a China. Mas na hora esses países deixaram o Brasil falando sozinho.

Da mesma forma que no caso da Dilma, em 2012, subestimou o que estava fazendo. Porque o setor financeiro não é apenas os bancos, é onde a elite coloca seu dinheiro. Além disso, há um problema estrutural no Brasil. O setor produtivo também tem dinheiro no setor financeiro. Eles pensam em investir o dinheirinho do BNDES, que tem juros baixos, mas o dinheiro deles mesmos eles aplicam no setor financeiro.

Ao mesmo tempo, como você falou, a Dilma, para comprar essa briga necessária, deveria ter articulado, montado uma base de apoio.

Isso começa a criar um clima que desperta forças políticas internas que percebem que o vento está a favor da derrubada da Dilma.

Começam a tentar atrapalhar.

É. E uma coisa que o Lula fez, porque ele é muito pé quente, e a Dilma é muito pré-fria, é que o Lula aproveitou o momento em que ele podia ser bonzinho. Quando ele diz em 2002 que ele ia respeitar contratos, é isso o que essa gente quer ouvir. Agora, o que é importante notar, e isso a imprensa anunciou na semana passada, a taxa de investimentos diretos, que é o dinheiro conhecido como de longo prazo, ainda é muito grande. (A taxa) está em US$ 105 bilhões. Quando eu cheguei ao Brasil, em 1990, era de US$ 1 bilhão. Isso tem de explicar: se um país está em tantas dificuldades, como continua atraindo essas taxas de investimento direito?  O Lula pegou um momento muito específico da história, em que pôde dar liberdade ao capital e ainda fazer política social. Já a Dilma é muito pré-fria, pegou a seca, depois vem a Lava Jato, que serve para quem quer derrubar o marco regulatório do pré-sal. A ideia é manter o governo como está e pressioná-lo para mudar a legislação do petróleo.

Isso tudo somado despertou as forças internas que querem derrubar o governo.

Não creio mais que haja muitos setores internos interessados em derrubar o governo. Para quê? Está ótimo assim. É um governo facilmente cooptável para fazer políticas impopulares. O que eles querem é evitar a volta do Lula e desestabilizar a Dilma, impedir que ela possa fazer qualquer guinada à esquerda. Mas nesta movimentação surgiram várias contradições, vários monstros, como o surgimento desse Eduardo Cunha, que é quase como um Collor para a burguesia. Outro monstro que eles criaram é o da intolerância. Isso tudo é extremamente inconveniente para quem tem interesses financeiros.

Você diria que a elite percebeu esse inconveniente e daí o recuo demonstrado pela imprensa mais recentemente?

Com certeza. É só observar editoriais do “Financial Times” e o “New York Times” mais recentes. É de interesse manter o governo. Até porque as políticas que eles querem estão sendo implementadas. Uma coisa é certa: com essa política, eles vão destruir o PT.

Quando você pensa em América Latina, você vê a crise brasileira criando obstáculos para os governos vizinhos?

Veja como são as coisas. Na Argentina, a Cristina Kirchner deu a volta por cima. O candidato dela está na frente das pesquisas.

Será porque ela foi contra o que dizia o mercado?

Não, é porque ela enfrentou a imprensa. Agora é o contrário: a eleição na Argentina vai ser boa para o Brasil. Já na Venezuela a situação é um pouco diferente. O Nicolás Maduro tem muitas dificuldades para governar. Ele não estava preparado. Mas lá também a direita não consegue se apresentar como projeto alternativo.

Uma coisa curiosa na crise brasileira é que ela é operada também a partir da máquina do Estado. São agentes públicos cooperando para a crise.

Sim, mas isso não tem nada a ver com a questão internacional. O Estado brasileiro é muito conservador e é estruturado para não fazer políticas em prol da população. Ele faz tudo para a coisa não funcionar.  Se você for a algum evento e perguntar para um professor da Unicamp, por exemplo, o que tem de ser feito, ele vai dizer que é preciso grandes investimentos em infraestrutura. Mas espera aí. Isso não foi tentado com o PAC? Por que está tudo atrasado? A população pensa que isso tem a ver com corrupção. Nada disso. A corrupção se aproveita disso. Há problemas estruturais muito fortes. A refinaria lá em Abreu e Lima (PE), há problemas seríssimos de planejamento, de engenharia. Qual foi a última vez que o Brasil havia construído uma refinaria? Nos anos 1970. Um país que fica mais de 30 anos sem investir nisso, perde sua capacidade. E aí há também o casamento perverso de uma coisa positiva, que é a democracia, a transparência, com o neoliberalismo, onde o Estado não investe. Isso cria a ideia de que tudo que vem do governo é suspeito. Então você tem um país onde há mais engenheiros no TCU (Tribunal de Contas da União) do que no Ministério do Transporte. Ou seja, o Estado que funciona é o Estado que controla. E tem um fetichismo: na dúvida, para a obra. Um juiz ou promotor que para uma obra é visto como herói.