Cidades antigas, problemas atuais
As conhecidas cidades históricas de Minas Gerais trazem em suas ruas, casas e monumentos uma importante parte da história do Brasil. Construções que eternizam a época de ouro. Imóveis que retratam o trabalho escravo de um povo. Hoje, essa representatividade histórica convive cada vez mais cercada dos problemas cotidianos das cidades modernas. A circulação de turistas aumenta, a economia cresce, pessoas migram para lá. Construídos entre o final do século 17 e início do 18, esses municípios têm dificuldades para contornar os transtornos que acompanham esses fenômenos.
Apenas 14 quilômetros separam Mariana e Ouro Preto, na região central de Minas Gerais, que devem suas origens à busca do ouro. Atualmente, a atividade mineradora ainda impera na região – juntamente com as riquezas, trouxe também problemas contemporâneos.
Como o grande fluxo de carros, apontado pela coordenadora do Programa Monumenta em Mariana, Fátima Guido. “A Praça da Sé era um estacionamento, temos fotos lá com 76 carros. Mas conseguimos transformar o lugar em uma área de lazer para os moradores e turistas. Durante anos, o chafariz que pertencia à praça ficou escondido atrás da Câmara Municipal. Hoje é o elemento mais original do local”, conta.
Para a coordenadora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Clarisse Martins Vilella, conscientizar a população é a arma principal. “À medida que um aluno da faculdade tem acesso à população, ele ajuda na informação. A comunidade ouve as pessoas falando da importância da cidade, por ser um grande conjunto barroco. Mas muitas vezes, não tem consciência do que o período representa na história da arquitetura e das artes”, explica. “Se a população tivesse consciência das dificuldades dos desbravadores em fazer essas obras, zelaria mais pelos monumentos. É fundamental que os cidadãos entendam a sua história e não vejam isso apenas como uma fonte de renda.”
Pode cair
Em São João del-Rei e Tiradentes, na região do Campo das Vertentes, a 12 quilômetros uma da outra, as construções também são basicamente do período barroco. Alguns monumentos sofrem perigo de desabamento e desfiguração. Os membros da Associação de Amigos de São João del-Rei travam uma luta para preservar o entorno do Fortim dos Emboabas, casarão tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1938. “Por lei, a área próxima ao monumento deveria ser preservada, mas infelizmente isso geralmente não é respeitado”, lamenta a presidente da associação, Alzira Haddad.
A associação teme a possibilidade de que seja construído no terreno um conjunto habitacional, como explica a coordenadora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Ana Cristina Reis Faria. “Já trabalhamos a frente da restauração no que se refere ao Fortim. Agora, recebemos à notícia do que poderá acontecer no entorno. Por isso, vamos tentar conscientizar as pessoas dos problemas irreversíveis, se naquele local for construído qualquer tipo de obra. Temos um projeto de fazer um espaço público para visitação e permanência das pessoas, valorizando a ruína do terreno ao lado do fortim. Mas para isso precisaremos de parcerias”, afirma.
Em Tiradentes, o problema mais grave atualmente se refere à Igreja da Santíssima Trindade. A construção foi parcialmente interditada em maio deste ano por solicitação do Iphan, após uma vistoria realizada pelo engenheiro Luiz Mauro de Resende. Na ocasião, foram constatadas trincas nas paredes, instalações elétricas inadequadas e expostas. No relatório, o engenheiro recomenda que “a circulação de pessoas no templo seja restrita e planejada, mais notadamente na capela-mor, onde os danos estruturais potencializam riscos de acidentes”.
A construção é simples, e recebe todos os anos milhares de fiéis ao tradicional Jubileu da Santíssima Trindade, nos meses de maio ou junho, dependendo do calendário litúrgico. Além da festa, a igreja continua celebrando as missas aos domingos. Frequentadora assídua, dona Maria Rosa de Almeida, de 74 anos, reflete o sentimento de preocupação da comunidade: “Fiquei muito triste quando cheguei aqui e vi as escadarias que levavam até a imagem do Pai Eterno interditadas. Me falaram que a igreja pode cair. Não podemos deixar isso acontecer. Essa obra é uma antiguidade que devemos preservar”.
Estrutural
A imagem a que se refere dona Maria Rosa ficava no altar-mor da igreja. Com cerca de 300 quilos, a estátua do Pai Eterno teve de ser retirada de seu local de origem e colocada na sacristia da igreja, devido ao risco de desabamento. “A Igreja, juntamente com o Iphan, resolveu retirar a imagem, pois além do seu peso existia um grande fluxo de pessoas que ali circulavam para tocá-la. A média diária era de 50 pessoas, e com a festa da Santíssima Trindade este número passava para cerca de 5 mil. Na festa deste ano, as pessoas protestaram, acharam ruim, afinal é uma tradição de séculos”, observa o padre Ademir Longatti, pároco da Igreja.
Padre Ademir acredita que uma escada construída por volta de 1940 esteja esmagando as paredes de taipa. “O Iphan ia dar início às obras de restauração, mas não houve um entendimento se deveria demolir a escada ou fazer outro tipo de obra. Só sei que a obra está sendo prorrogada, e quanto mais passa o tempo, mais aumentam as rachaduras.”
A chefe do escritório do Iphan de Tiradentes, Maria Cristina Seabra de Miranda, diz que o problema da igreja da Santíssima Trindade é mais técnico, estrutural. “O instituto irá elaborar um projeto neste sentido. Estamos esperando recursos que dependem de outras instâncias governamentais ou privadas para a execução da obra.”
Tiradentes enfrenta ainda o transtorno da circulação de ônibus e caminhões no centro histórico. Para o professor e membro da Cooperativa de Condutores de Turismo Luiz Cruz, o trânsito compromete não só as estruturas dos imóveis, como a segurança dos moradores e turistas. “Em Tiradentes, é proibido circular caminhões e ônibus. Existe uma lei que não é cumprida por falta de fiscalização. Isso compromete casas, igrejas, monumentos históricos, pois o material utilizado nesses imóveis é muito frágil, como taipa, pau-a-pique, e com a trepidação fica totalmente comprometido. O trânsito interfere também na questão da segurança, pois em grandes eventos a cidade fica muito cheia e se houver um acidente não tem como um caminhão do corpo de bombeiros circular”, descreve o professor.
Crescimento desordenado
Para Clarisse Vilella, em Ouro Preto o problema do trânsito já foi pior. “A fiscalização funciona. No centro histórico não tem fluxo de caminhão. Já o tráfego de ônibus é um problema sério também, pois não existem alternativas para deslocar as pessoas”. Opinião compartilhada por Fátima Guido, do Programa Monumenta em Mariana, quando ela diz que a falta de alternativas para se deslocar os automóveis dificultam o processo. “Temos um projeto para o trânsito, mas ainda há uma resistência em implantá-lo. Tudo tem de ser bem avaliado, afinal não podemos proibir totalmente o tráfego de veículos no centro”, pondera.
Construções em morros, mesmo que distantes dos centros históricos, ocasionam uma interferência nos conjuntos arquitetônicos dos municípios. “O que acontece em Ouro Preto não é diferente do que acontece em outras cidades, que é o crescimento populacional em áreas não planejadas”, avalia Clarisse Vilella, da UFOP.
Fátima Guido acredita que a população ficou durante muito tempo sem regras, mas que essa realidade já está mudando. “Antigamente, as pessoas construíam o que queriam. Existiam muitas invasões e construções de final de semana. Isso está sendo mudado, mas ainda falta muito. Nosso grande trunfo são os jovens que começam a aprender, dentro das salas de aula, o tesouro que sua cidade possui”, ressalta Fátima.
Os municípios estão elaborando planos diretores que cuidam não de um monumento isolado, mas de todo o conjunto. Para o presidente da Federação das Associações dos Moradores de Ouro Preto (Famop), Flávio Andrade, o descontrole populacional que aconteceu em décadas passadas deve-se a uma omissão do poder público – algo que, segundo ele, vem se modificando nos últimos anos. “Antes, o patrimônio público era visto como coisa de artista pelo poder público e como um incômodo pelos moradores. Mas da década de 1990 para cá, teve início uma reversão, quando o turismo começou a gerar renda. Sabemos que Ouro Preto tem uma imensa periferia em volta da cidade, ocupada por pessoas que vieram de diversas cidades da região de forma muito desordenada. Não tem como retirar essas pessoas de lá, o que resta é buscar soluções para que minimizem esse impacto”, destaca.
Um estudo elaborado no município de Mariana revelou que nos últimos 20 anos a população triplicou. “O aumento populacional foi de pessoas que vieram de outros municípios, e não havia uma preocupação em preservar nosso patrimônio. Hoje, tentamos conscientizar essa comunidade da importância da preservação, mas ainda está muito longe do que seria o ideal”, explica Fátima. Para ela, essas cidades são relíquias que, como todo patrimônio histórico, ajudam a entender a construção da identidade brasileira. Proteger o que resta é uma forma de não deixar que a modernidade apague essa história.
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