“Brasil não pode se dar ao luxo de comissão de meia verdade”, alerta procurador
O nome de Marlon Weichert, procurador da República em São Paulo, transformou-se em sinônimo da luta para que o Brasil faça as pazes com seu passado. Longe de defender que se coloque uma pedra sobre o assunto, como defendem setores militares, o representante do Ministério Público Federal trata de investigar o que aconteceu na ditadura (1964-85).
Ao lado da procuradora Eugênia Gonzaga, Weichert pede a responsabilização dos culpados – embora encontre limites muito claros no Judiciário. Além disso, cobra do Estado os investimentos necessários para esta apuração, como no caso do Cemitério de Vila Formosa, em que foi necessário muito suor para que se montassem as equipes que agora buscam desaparecidos políticos.
“O Brasil não pode se dar ao luxo de ter uma comissão de meia-verdade. Tem de ser uma comissão de verdade mesmo”, resume sobre a montagem da comissão que teria a responsabilidade de passar a limpo o período do regime. Uma das prioridades da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, a aprovação do projeto depende do Congresso e de resistências impostas pelos militares e pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim. Para Weichert, é preciso mexer no texto atual para que não restem entraves ao trabalho da Comissão da Verdade.
Confira a seguir a entrevista concedida à Rede Brasil Atual.
RBA – Como viu o trabalho nos últimos cinco dias aqui no Cemitério de Vila Formosa?
O trabalho foi bastante produtivo. Foram cinco sepulturas abertas, cada uma com quatro níveis de sepultamento, às vezes com mais de uma ossada por nível. É um trabalho bastante complexo, bastante árduo porque o solo estava molhado, os ossos são bastante antigos. A gente vê que foi uma semana muito produtiva, e agora é fazer análise desse material com as informações que temos relativas ao Virgílio.
RBA – A articulação de esforços hoje é muito melhor do que se via há pouco tempo.
Com certeza. Até então a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República) não vinha desempenhando esse trabalho de, por iniciativa sua, procurar os restos mortais dos desaparecidos. Foi infelizmente necessário que o Ministério Público Federal tivesse de mover uma ação civil pública para obrigar a União a exercer esse papel para que a coisa se desenrolasse. A gente fica bastante feliz em hoje perceber uma movimentação bastante intensa da Secretaria de Direitos Humanos para dar conta desta atividade, que está prevista em lei.
RBA – Quanto à construção de um memorial em Vila Formosa, há alguma definição sobre a quem caberá e quando será feito?
Não há nenhuma definição, mas achamos que há uma responsabilidade compartilhada de todos os entes federativos, União, estado e município. Todos são corresponsáveis pelos sepultamentos clandestinos e pelos desaparecidos políticos. Então, imaginamos que todos devam responder por isso. O Ministério Público em dezembro já os notificou para tomarem iniciativas nesse caminho.
Agora pretendemos retomar esse assunto. Como são muito difíceis as possibilidades de encontrar os restos mortais, pelo grande tempo transcorrido, achamos que não se deve sequer esperar todas as buscas para pensar na construção desse memorial. Achamos que podemos começar a discutir isso já. Esse trabalho vai ser sempre um trabalho em aberto porque podem surgir novas tecnologias e novas informações que permitam reabrir. Ele nunca será concluído totalmente. Então, acho que já passou da hora de fazer um memorial e de continuar com os trabalhos. Tem de ser uma coisa sempre aberta, sempre para a frente. É preciso homenagear e, mais que homenagear, garantir às famílias desses desaparecidos um espaço, um lugar simbólico para que possam prantear seus entes queridos.
RBA – Há possibilidade de que a construção do memorial seja utilizada como pretexto para encerrar as buscas por desaparecidos?
Pretexto as pessoas que são contra o trabalho sempre vão buscar, para prejudicá-lo. Mas o importante é que nós temos cada vez mais ampliado as parcerias com as instituições para que isso não ocorra. Então, tenho convicção de que, sendo tudo feito com transparência e de uma forma muito democrática, esse risco não existe. Enquanto o Ministério Público estiver zelando, as familiares estiverem zelando e a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos estiver consciente de sua responsabilidade, esse risco é nulo.
RBA – No ano passado, principalmente no momento eleitoral, houve certo acirramento em torno da discussão sobre o passado. A sociedade saiu mais consciente desse debate?
Acho que tem algumas coisas importantes para fixar. Até 2008, quando o Ministério Público Federal em São Paulo começou a tratar do assunto, simplesmente o país não falava desse tema, era um assunto proibido, oculto. O fato de a sociedade brasileira, em qualquer contexto, estar discutindo é muito bom, porque estamos desinterditando esse assunto. É muito importante que num momento eleitoral se discuta. Mais importante ainda é que a presidente da República, quando tomou posse, fez menção em mais de uma passagem de seu discurso da relevância desse tema. Isso está garantido. Não temos dúvida de que vamos experimentar avanço nessa matéria. Quanto mais debate houver, inclusive para ouvir com espaço daqueles que pensam diferente, é importante. Isso é democracia, é a liberdade de manifestação e o esgotamento do debate.
RBA – De que maneira a Comissão da Verdade pode ajudar em trabalhos como este, de busca de desaparecidos?
A Comissão da Verdade pode ter um grande papel a desempenhar. Ela tem uma dimensão bastante expressiva no âmbito nacional e que, na nossa visão, pode atrair mais pessoas para este trabalho. Agora, é preciso inaugurar uma discussão sobre qual comissão da verdade queremos. O Brasil não pode se dar ao luxo de ter uma comissão de meia-verdade. Tem de ser uma comissão de verdade mesmo.
E isso significa ter uma lei que crie uma comissão dotada de condições materiais, humanas e jurídicas para exercer bem o seu mandato. Se não, pode ser uma frustração ainda maior. Neste sentido foi a condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos para o Estado brasileiro, que diz que a Comissão da Verdade que está em projeto precisa ser independente, idônea, transparente e dotada de recursos e atribuições correspondentes a seu mandato. Isso vai demandar, a nosso ver, um pequeno ajuste no projeto de lei enviado pelo Executivo.