‘Agora a gente conversa com o médico como se fosse um amigo’
São Paulo – Bem na divisa do estado de Rondônia com a Bolívia, a mais de 600 quilômetros da capital, Porto Velho, está São Francisco do Guaporé, cidade de 18 mil habitantes. Até bem pouco tempo, quando crianças, adultos e idosos ficavam doentes, o jeito era chamar a mãe, o pai, parentes, e buscar ajuda para poder ir a cidades vizinhas. “Médico era coisa difícil.”
Quem conta é a dona de casa Edite Rodrigues. Ela esteve na capital paulista levar seu testemunho ao simpósioPrograma Mais Médicos: Perspectivas e opiniões, que o Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) realizou no último dia 11.
Conforme relatou, em sua fala simples, antes do programa federal o atendimento no posto de saúde era muito precário. Até havia equipe de atenção à saúde da família, mas faltava justamente o médico, profissional que, além de diagnosticar doenças, ainda coordena a estratégia de trabalho na localidade.
E quando aparecia algum por lá, como ela destaca, mal conseguia conversar com as pessoas doentes e seus familiares, principalmente com aquelas mais humildes, de baixa escolaridade ou analfabetas. “Hoje, o médico vai na comunidade, vai visitar, ver criança nascer, atender criança de baixo peso. A gente consegue consulta até para micose; e conversa com ele como se fosse amigo. Antes não, ele era uma autoridade máxima.”
No distrito de Albuquerque, zona rural de Corumbá (MT), também há novos vínculos sendo formados entre profissionais de saúde e a população. “Temos médico todo dia, e não mais uma vez por semana. Antes, quando a gente ia (ao posto), não sabia se ia ser atendido”, conta a dona de casa Nilza de Souza. “Minha mãe é cadeirante; o médico vai atender em casa. Agora temos duas pessoas em uma: um médico e um amigo. Então só tenho a agradecer.”
Os laços, conforme o agente comunitário de saúde Joilson da Silva, da mesma localidade, eram impossíveis há pouco mais de um ano. “Não tinha como criar vínculo. Faltava médico; ninguém queria vir para cá, na zona rural, a 70 quilômetros”, afirma ele, na função desde 2005.
A agente de saúde Iraci Vera dos Santos, de São Francisco do Guaporé (RO), a situação também não era fácil: “É difícil andar sozinho, fazer nosso trabalho sozinho. E a consulta era super rápida porque o médico não tinha tempo para nada”, lembra.
“Agora é possível acompanhar as famílias diariamente. Gestantes, diabéticos, crianças, idosos. Hoje acompanhamos hipertensos, acamados. Como é difícil tirar e levar para o postinho quem não pode andar! Por isso a população está adorando.”
Iraci disse torcer para os médicos não irem embora tão cedo, já que agora é possível fazer reunião com médicos, enfermeiros, demais agentes e organizar o trabalho. E comemora: “A gente organiza o mês. Não é fácil, mas estamos avançando”.
Também agente de saúde, Maria do Carmo Santos Pereira, do município de Nossa Senhora das Dores, no semiárido sergipano, a 72 quilômetros da capital, Aracaju, vê diversas melhorias com a chegada de médicos. “Antes, eles chegavam ao posto às 9h, 9h30, e queriam ir embora ao meio-dia”, conta.
“Hoje, o médico vai às casas porque tem de conhecer a família. Acorda às 5h para ir para até a zona rural, muito distante de tudo. A gente chega lá às 6h30 para a ginástica das idosas. Todas estão felizes, vaidosas. Fizeram até desfile. Secaram o cabelo, fizeram maquiagem. Foi muito bonito mesmo”. À vontade, brinca: “Espero que os médicos fiquem por muito tempo. Pelo menos até eu me aposentar”.
Na mesma cidade há outra certeza: “Foi Deus que colocou o doutor Rodolfo aqui”, acredita a sertaneja Maria da Graça Lima, 88 anos. O médico, de acordo com ela, “vai na casa do povo, visita todo mundo, recebe a gente bem”. E garante: “Eu vivia doente das ‘perna’, não conseguia nem abaixar, apanhar nada no chão. Mas graças a Deus, e aos remédios do doutor, estou muito satisfeita. Não sei como vamos ficar se um dia ele se for”, diz.
A fala da gente simples guarda semelhança com a de um doutor, o orientador de mestrado e doutorado do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp Elisaldo Carlini. Aos 83 anos, ele rememora os tempos de infância no interior paulista, no pequeno município de Pirajá. Numa infância sem médico, como costuma dizer, teve boqueira, que era queimada, e bronquite, tratada com tatuzinhos de jardim que sua mãe colocava num paninho que ele carregava pendurado no pescoço.
Cinco dias depois, quando morriam e já fediam, eram substituídos por outros vivos. A solitária era cuidada com mastruz com leite. Mordido por um cachorro louco, contou com soro antirrábico, que veio de cidades vizinhas, trazido de trem e depois a cavalo. E teve ainda muita sorte de chegar a tempo a outra cidade maior e conseguir curar o tracoma, doença inflamatória dos olhos, que poderia deixá-lo cego.
“O que vivi há mais de 80 anos ainda é vivido por metade da população brasileira, sobretudo a mais pobre, que vive pelo interior desse país sem assistência. É preciso maior compreensão sobre a grandeza da profissão do médico, que é mais digna quando bem exercida.”
Carlini integra a comissão organizadora do simpósio realizado pela Faculdade de Medicina Unifesp, com apoio da Organização Pan-Americana da Saúde, para discutir com estudantes, médicos, agentes comunitários de saúde, gestores municipais e usuários do sistema público os avanços, desafios e as perspectivas a curto, médio e longo prazo do programa federal que já levou 14.462 mil médicos a 3.785 municípios e 34 Distritos Sanitários Indígenas – e que atualmente atende 50 milhões de pessoas.
Outras vertentes do programa são o investimento de R$ 5,6 bilhões para construção, ampliação e reforma de Unidades Básicas de Saúde (UBS), e R$ 1,9 bilhão para construir e ampliar Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). De acordo com o Ministério da Saúde, das 26 mil UBS que tiveram recursos aprovados, 20,6 mil (79,2%) estão em obras ou já foram concluídas, e 363 UPAS, de um total de 943, já foram concluídas.
Também pelo programa há a reestruturação e ampliação da formação médica no país, que até 2017 deverá abrir 11,5 mil novas vagas de graduação em medicina e 12,4 mil vagas de residência médica para formar especialistas, até 2018, em saúde da família. O Ministério da Educação já autorizou a abertura de 4.460 novas vagas na graduação, sendo 1.343 em instituições públicas e 3.117 em faculdades privadas, principalmente em localidades do Norte e Nordeste, com escassez de profissionais.
“Espero que nossos brasileiros estudem mesmo para serem médicos e que enquanto isso possamos continuar esse programa com outros médicos, mesmo quando os de agora forem embora e vierem outros”, diz Edite Rodrigues, de São Francisco do Guaporé.
Mais do que um encontro de avaliação da política por coordenadores do programa no Ministério da Saúde e do Ministério da Educação, o encontro foi espaço para que brasileiros de diversas regiões do país, como a dona Edite, pudessem falar sobre a diferença que faz em suas vidas ter um médico para consultar tanto na hora de resolver um problema de saúde como aprender a evitar doenças.
Convidados e trazidos a São Paulo pela comissão organizadora, eles dividiram a mesa de debate com agentes comunitários de saúde e médicos brasileiros e estrangeiros participantes para contar o significado do acesso ao atendimento médico.
Em suas participações, os médicos, mais familiarizados com entrevistas e palestras, falaram principalmente sobre os projetos construídos com as equipes das unidades de saúde para estreitar o vínculo com a população atendida, que, segundo eles, já vêm trazendo resultados positivos.
Entre eles, a confiança da população, que passa agora a procurar mais os centros de saúde e a seguir tanto os tratamentos prescritos como as recomendações para evitar problemas de saúde, como a prática de exercícios físicos e alimentação adequada, com mais cereais, verduras, legumes, frutas, carnes e laticínios frescos, em vez de frituras em excesso, comidas gordurosas e açucaradas – como em geral são os produtos industrializados.