Bolivianos, argentinos e tailandeses unem-se contra trabalho escravo na produção de roupas
Poucos refluxos políticos foram tão férteis nesta década quanto a derrocada da Argentina de 2001-02. Ir (mais uma vez) de cabeça rumo ao abismo teve efeitos negativos que nenhum argentino gostaria de relembrar. Mas esta caída foi também profícua no surgimento de respostas a uma crise que, em sua reta final, tragou para baixo da linha de pobreza 700 mil pessoas ao ano.
Em dezembro de 2001, quando não havia mais escapatória, por fim as pessoas se deram conta de que os problemas não eram isolados. E que era preciso buscar respostas locais para seguir adiante. As assembleias de bairro foram um forte exemplo disso – talvez o mais marcante. A vizinhança se reunia para detectar quais questões eram comuns e precisavam de uma saída.
Uma das muitas soluções encontradas foi a fundação de uma cooperativa têxtil com ex-trabalhadores escravos. No começo deste mês, La Alameda somou forças a um projeto similar da Tailândia para criar a primeira confecção internacional de roupas livres de servidão. São tailandeses, bolivianos e argentinos que se uniram numa iniciativa pioneira e que parte agora em busca de novos parceiros.
Trabalho digno e fome
Avellaneda é um bairro de Buenos Aires habitado pelas camadas baixa e média-baixa. O ônibus demora a chegar e, à medida que avança, vai deixando para trás a imagem de elegância associada à capital argentina e revelando a cidade castigada pela década de Carlos Menem (1989-99) e Fernando de la Rúa (1999-2001).
Quando os moradores do bairro se reuniram, em 20 de dezembro de 2001, viram que os principais problemas eram fome e trabalho digno. “Mais que desemprego, o que havia era uma queda dos ganhos e a impossibilidade de chegar até o fim do mês”, lembra Gustavo Vera, presidente e fundador de La Alameda.
Se o dinheiro ficava curto, somar os trocados era a saída. Se fome era o problema, esses trocados davam conta de acalmar o estômago. Um refeitório comunitário foi o embrião da cooperativa. Satisfeita a fome, respostas a novas perguntas haveriam de surgir.
Imigração
Perto da hora do almoço, a saída das crianças da escola local revela que o bairro tem uma grande população de imigrantes. Meninas e meninos de rostos mestiços, mais morenos que a ‘regra’ na capital argentina – e com os olhos mais puxados.
Quando se entra no refeitório de La Alameda, ao lado do Parque de Avellaneda, imigrantes bolivianos, principalmente, e peruanos, um pouco menos, provam o prato do dia: raviólis com um molho vermelho aparentemente ralo.
Nos fundos do casarão, duas senhoras fazem artesanato em cerâmica. Pelo corredor escuro há inúmeros recortes de jornal, do mais conservador ao mais ‘progressista’, exaltando o trabalho da instituição. Escadas acima surge um espaço com algumas máquinas de costura, panos para todos os lados e cabides com as roupas já terminadas.
Foi com os imigrantes que surgiu a grande indagação – e a grande resposta – da história de La Alameda. A economia falida foi o pretexto e o incentivo que muitos empresários esperavam para apertar o cinto e deteriorar ainda mais as condições de trabalho. Os aliciadores de mão de obra não vacilaram em cruzar a fronteira com a Bolívia para encher ônibus e mais ônibus com imigrantes dispostos a trabalhar muito para ganhar um pouco mais.
Maria Magdalena Velasquez Huaman deixou La Paz com 100 bolivianos no bolso, em torno de R$ 25, e com a promessa de trabalho em uma oficina de costura. “Como não sabia costurar, me colocaram como ajudante de cozinha com salário de cem pesos (hoje, o equivalente a R$ 50). Trabalhava no mínimo 14 horas por dia. Ia dormir depois de todo mundo”, reclama.
Contra escravidão
Maria e outras dezenas de milhares de imigrantes foram – e são – presa fácil para empresários inescrupulosos. Grandes marcas de roupas se beneficiam do trabalho em condições degradantes nesta e em outras áreas do mundo. Quando algum trabalhador quer ir embora, descobre que “deve” ao empregador os gastos com hospedagem e alimentação.
O pessoal de La Alameda rapidamente se deu conta de que a questão se repetia em outros países da América Latina e da Ásia. “Não é um problema que tem a ver com a cultura boliviana, mas com regras de superexploração e da globalização. O tráfico de pessoas ocupa um espaço importante para diminuir custos e maximizar os lucros”, afirma Gustavo enquanto toma um mate na mesa do refeitório.
Se o problema era comum, as respostas eram poucas. A saída foi criar as próprias alternativas e atacar em duas frentes: buscar a responsabilização judicial e formar uma cooperativa para trabalhadores resgatados.
Hoje, La Alameda tem 140 causas judiciais abertas, a maioria contra marcas internacionais que utilizam mão de obra escrava. Trabalhadores libertados passam-se por imigrantes em busca de emprego para investigar a ocorrência de escravidão.
Para Gustavo, a cooperativa se transformou numa das instituições mais confiáveis da Argentina. “Porque não buscamos cargo, não buscamos dinheiro, não temos financiamento, não temos funcionários que se dediquem exclusivamente a investigar. Inclusive os advogados colaboram voluntariamente”, ressalta.
Parte das investigações rendeu o confisco de 350 máquinas de costura que hoje são utilizadas pela cooperativa e por um polo têxtil em outra região da cidade com o mesmo caráter de respeito aos direitos humanos. O trabalho da confecção de La Alameda é o tema da segunda reportagem da série “Sem Correntes”.
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