A Renda Básica de Cidadania e seus impactos na vida dos trabalhadores
É necessário “fazer valer o projeto de lei do Senador Suplicy, aprovado em 2004, em que se instituiu no Brasil, ainda que gradativamente, a Renda Básica de Cidadania, sendo o Bolsa Família seu ponto inicial. Programas universais como a Renda Básica, que não distinguem condição socioeconômica, tendem a cobrir melhor seu público-alvo que programas focalizados nos pobres, em que erros de inclusão e exclusão sempre acontecem”, defende a economista Alessandra Scalioni.
Em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line, ela menciona, que, no Brasil, a forma de financiamento do programa “seria um desafio a ser pensado para que seu peso não comprometesse as finanças públicas”. No Alasca, a Renda Básica de Cidadania “é financiada pelos retornos obtidos da aplicação dos royalties do petróleo em ações da bolsa e títulos”. Esse, menciona, seria um bom exemplo a ser seguido no Brasil.
Alessandra Scalioni é graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas e, atualmente, está cursando o mestrado em Economia na Universidade Federal Fluminense – UFF.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No Brasil, quais são os efeitos de programas de transferência de renda sobre o mercado de trabalho?
Alessandra Scalioni – Esta pergunta não é muito fácil de ser respondida, uma vez que os dados do Cadastro Único, em que as famílias pobres requerentes ao benefício do programa Bolsa Família declaram suas informações (sexo, idade, cor, localidade, renda, ocupação etc.), mostram uma subdeclaração da condição no mercado de trabalho por parte dos cadastrados, sejam beneficiários ou não. Segundo dados do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2008) , dentre os beneficiários com idade entre 16 e 65 anos, em média 58,7% declararam não trabalhar no período, enquanto apenas 27,9% estavam ativos no mercado de trabalho, seja ele formal ou informal.
Alguns autores afirmam que o recebimento de transferências de renda tende a aumentar a oferta de trabalho dos beneficiários. Tavares (2008) analisa a oferta de trabalho das mães de famílias beneficiadas pelo programa e conclui que esta é aumentada com o recebimento do benefício para compensar a perda do rendimento das crianças da família. Mattos e Ponczek (2009) analisam a relação entre o estigma e as decisões econômicas dos beneficiários por programas de transferência do governo federal e concluem que as famílias beneficiárias que se sentem estigmatizadas tendem a procurar emprego (ofertar mais horas de trabalho) e a reduzir a probabilidade de ter membros desempregados.
No entanto, o fato de grande proporção de beneficiários afirmar que não trabalha, seja por dificuldade de inserção no mercado de trabalho, seja por medo de declarar um trabalho precário e perder o benefício, dificulta muito fazer uma análise dos impactos de um programa de transferência de renda sobre o mercado de trabalho brasileiro.
IHU On-Line – Que transformações os programas de transferência de renda causam nas famílias que vivem com um salário mínimo?
Alessandra Scalioni – De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais 2003 , a família brasileira tem, em média, 3,3 pessoas. Considerando quatro pessoas, para facilitar o cálculo, em uma família que vive com um salário mínimo (R$510,00), tem-se uma renda familiar per capita de R$127,50, o que faz com que esta família seja parte do público potencial do programa Bolsa Família (famílias com renda de R$70,01 a R$140,00 per capita que possuam crianças entre seus membros, ou famílias com renda per capita inferior a R$70,00).
Ainda que o valor do benefício possa variar de R$22,00 (1 criança na família) a R$88,00 (1 criança e 2 adolescentes), seu recebimento pode melhorar muito a vida de uma família que vive com apenas um salário mínimo. Apesar de parecer pouco, o benefício do Bolsa Família pode ajudar nas despesas com alimentação, vestuário, material escolar, entre outros. Além do benefício monetário, as condicionalidades estimulam os pais a deixarem os filhos frequentarem a escola por mais tempo, o que repercute em melhor formação dos jovens e melhor inserção no mercado de trabalho no futuro. Portanto, programas de transferência de renda geram transformações positivas em famílias que vivem com o salário mínimo, que tendem a ter maior acesso aos bens de consumo básicos e a ter crianças com maior frequência à escola.
IHU On-Line – Críticos de programas de transferência de renda alegam que trabalhadores estão optando por não ter registro em carteira a fim de manter os benefícios sociais como Bolsa Família. Isso de fato acontece? Se sim, quais as consequências, para a sociedade, de pessoas estarem abrindo mão de um valor tão importante como o trabalho legislado? O que essa situação revela sobre os programas de transferência de renda do país?
Alessandra Scalioni – Este ponto deve ser analisado com cautela. Não acredito que uma família pobre abra mão de um emprego formal – que paga um salário mínimo (R$510,00) e garante direitos como seguro-desemprego, contribuição à previdência social – por medo de perder o benefício do Bolsa Família, que paga no máximo R$200,00 para uma família extremamente pobre e R$132,00 para uma família pobre. Se a família é numerosa, ter um emprego formal não vai eliminá-lo do programa Bolsa Família, pois o critério para seleção considera a renda familiar per capita, independente de onde provenha esta renda, ou seja, independe se o emprego é legislado ou não.
Acredito sim que programas do tipo “teste de meios” (em que é necessário comprovar a renda para ter acesso), como é o Bolsa Família, possam estimular as famílias a subdeclararem suas rendas ou omitirem o emprego precário por medo de perderem o benefício e, mais tarde, quando perderem o emprego que tende a ser temporário, não o conseguirem novamente.
Esta situação, e não a comumente usada pelos críticos do programa Bolsa Família, revela a necessidade de fazer valer o projeto de lei do Senador Suplicy, aprovado em 2004, em que se instituiu no Brasil, ainda que gradativamente, a Renda Básica de Cidadania, sendo o Bolsa Família seu ponto inicial. Programas universais como a Renda Básica, que não distinguem condição socioeconômica, tendem a cobrir melhor seu público-alvo que programas focalizados nos pobres, em que erros de inclusão e exclusão sempre acontecem. Segundo Van Parijs e Vanderborght (2006), a Renda Básica de Cidadania é “uma renda paga por uma comunidade política a todos os seus membros, em termos individuais, sem comprovação de renda nem exigência de contrapartida”. Portanto, ela difere bastante de outras formas de transferência de renda, sendo tratada como um direito de cidadania, o que evitaria problemas como omissão e subdeclaração de renda.
IHU On-Line – Comparando com outros programas de transferência de renda, quais são os diferenciais e as vantagens do Bolsa Família?
Alessandra Scalioni – O Bolsa Família tem a vantagem, frente a programas mais universais, de ser menos custoso, pois é focalizado apenas nos pobres. Mas possui a desvantagem de gerar erros de seleção (inclusão de não pobres e exclusão de pobres), além do problema de qualquer programa do tipo “teste de meios”: a omissão e a subdeclaração de informações usadas no processo de seleção dos beneficiários.
Se comparado a outros programas na América Latina, o Bolsa Família tem algumas semelhanças com o “Asignación Familiar” (Uruguai) e com o “Oportunidades” (México), em que uma transferência monetária de renda é dada às famílias pobres com crianças entre seus membros, condicionada à frequência escolar.
Estes programas de transferência de renda evoluíram muito nos últimos anos, sobretudo por serem pagos em dinheiro através de um cartão. Isto é um diferencial frente aos programas que distribuíam alimentos ou cestas básicas no passado, pois dá maior liberdade às famílias de escolherem em que gastar o benefício, priorizando as necessidades mais urgentes. E seu recebimento diretamente em bancos tende a reduzir a corrupção e a fazer o benefício chegar a quem realmente precisa.
IHU On-Line – De que maneira, na sua avaliação, o Bolsa Família desempenha o seu maior desafio: combater a fome e a miséria, e emancipar as famílias mais pobres do país?
Alessandra Scalioni – Acredito que o programa Bolsa Família tem contribuído significativamente para o combate à fome e à extrema pobreza ao garantir uma renda às famílias mais pobres. Com o benefício, as famílias têm um acesso maior a bens de consumo básicos, o que alivia a fome e a miséria. No entanto, seu baixo valor não tem conseguido emancipar as famílias pobres do país. Segundo Medeiros et alii (2007), o impacto do Bolsa Família é maior sobre a intensidade da pobreza que sobre a proporção de pobres, ou seja, o programa tem conseguido aliviar a pobreza, mas não eliminá-la. É certo que o programa tem melhorado a vida das famílias pobres brasileiras, mas ainda não logrou tirar estas famílias desta condição vulnerável.
IHU On-Line – Quais as implicações da distribuição da Renda Básica de Cidadania e da renda mínima num país como o Brasil?
Alessandra Scalioni – O Brasil é o primeiro país a instituir a Renda Básica de Cidadania, em 2004. Porém, ela ainda não foi implementada nos moldes em que foi pensada. O Alasca é o único lugar do mundo que faz algo parecido com o que se denomina Renda Básica de Cidadania, que é o pagamento de uma quantia em dinheiro a todo cidadão independente de sua renda, cor, religião ou qualquer critério. Além de seu recebimento não implicar em qualquer contrapartida. O dividendo pago anualmente aos cidadãos do Alasca é financiado pelos retornos obtidos da aplicação dos royalties do petróleo em ações da bolsa e títulos.
No Brasil, a distribuição de uma Renda Básica de Cidadania eliminaria custos administrativos como cadastramento dos requerentes ao benefício, monitoramento das condicionalidades e do cumprimento das contrapartidas, uma vez que todo cidadão teria o direito de receber o benefício, pobre ou não pobre. Assim, o risco de erros de exclusão não existiria, pois todos os pobres estariam cobertos pelo programa. No entanto, a implantação de um programa universal como o Renda Básica de Cidadania aumentaria os gastos do governo com transferências, ainda que parte destas voltaria para o governo na forma de tributos, sobretudo dos não-pobres.
A forma de financiamento da Renda Básica de Cidadania no Brasil seria um desafio a ser pensado para que seu peso não comprometesse as finanças públicas. O exemplo do Alasca poderia ser seguido no Brasil, que recentemente descobriu as reservas do pré-sal. Mas os benefícios de se ter uma Renda Básica de Cidadania no país são significativos, uma vez que todo cidadão teria o direito a uma renda, como um direito de cidadania, e não como um auxílio por sua vulnerabilidade. E isto implicaria em uma melhor condição de vida dos brasileiros e um maior poder de barganha no mercado de trabalho, por exemplo, podendo o trabalhador negar empregos precários por ter uma renda garantida.
IHU On-Line – Em que medida o direito à Renda Básica de Cidadania está relacionado ao direito do trabalho? A Renda Básica de Cidadania (aquela renda universal destinada a qualquer cidadão) permitiria aos trabalhadores recusar ocupações retribuídas por baixos salários, por exemplo?
Alessandra Scalioni – Como dito anteriormente, o direito a uma renda mínima contribui para que o trabalhador tenha melhores condições de negociar no mercado de trabalho, tendo íntima relação com o direito ao trabalho digno. O seu recebimento, acredito eu, permitiria que trabalhadores não necessitassem se submeter a qualquer tipo de trabalho para obter alguma renda. Tendo uma renda mínima, este trabalhador teria a capacidade de escolher melhor onde trabalhar, podendo recusar ocupações precárias e de baixa remuneração.
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