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Postado em: 30/01/2015 - 16h06 | Vitor Araújo Filgueiras* para Brasil de Fato

Seguro desemprego, promessas e interesses de classe

A promessa de não reduzir direitos trabalhistas “nem que a vaca tussa”, atribuída à presidente durante o período eleitoral, não durou sequer até a posse do novo mandato. Mesmo reeleito com compromisso de defesa de direitos e apoio maciço de trabalhadores e suas representações, o governo editou a Medida Provisória (MP) 665, em 30 de dezembro. Neste diploma consta o aumento do tempo mínimo de vínculo de emprego formal necessário para o trabalhador dispensado sem justa causa terdireito a requerer alguma parcela de Seguro Desemprego.

Objetivamente, foi retirado o direito trabalhista de receber uma compensação pecuniária durante a procura de outro emprego, de todos aqueles que forem dispensados com mais de 6 meses de vínculo de emprego, mas com menos de 18 meses trabalhados num período de 2 anos (num primeiro pedido, e menos de 12 meses num intervalo de 16, numa segunda requisição). Nenhum eufemismo encobertará a supressão do direito ao Seguro Desemprego que atingirá provavelmente milhões de trabalhadores, especialmente os jovens, todos os anos.

Para o governo, o aumento dos valores pagos com Seguro Desemprego nos últimos anos é um problema para as contas públicas e, por isso, teria alterado as regras de concessão do benefício. Neste texto, examinaremos a lógica e as prováveis consequências reais dessa medida.

Adianto que a premissa subjacente dos argumentos que sustentam a MP 665 é que o trabalhador pode escolher livremente onde, quando e se vai trabalhar ou não, como se houvesse um equilíbrio de forças no mercado de trabalho, e a relação capital-trabalho fosse entre iguais. Longe de ingênua, a premissa da igualdade é comumente aludida nos debates sobre regulação do trabalho, e visa combater qualquer ação externa que atenue o despotismo do agente dominante da relação: o empregador. No caso, a MP 665 elimina uma proteção social mínima contra o desemprego, recrudescendo a vulnerabilidade do trabalhador frente à ameaça de dispensa, e consequentemente aumentando sua subordinação em relação aos ditames empresariais.

Para além da simples retirada de direitos com a finalidade de cortar gastos, a MP se ampara em dois argumentos, mesmo que não estejam explicitamente apresentados na exposição de motivos da MP: a desídia do trabalhador e o conluio entre empregado e patrão. À frente explicaremos essas ideias que, a despeito de não terem guarida de pesquisa empírica, estão arraigadas como sensos comuns em vários ambientes, proliferando-se com os casuísmos que almejam explicar o funcionamento do mercado de trabalho.

Vejamos:

A dispensa sem justa causa é a única forma de concessão do Seguro Desemprego. Portanto, estão excluídos os desligamentos a pedido do trabalhador ou motivados por condutas que ensejem justa causa. A concessão do Seguro, portanto, depende necessariamente de uma decisão patronal. Quanto mais empregados forem dispensados pelos patrões, mais benefícios do Seguro Desemprego tendem a ser pagos pelo Estado.

Há consenso na literatura de que a taxa de rotatividade (simplificadamente, trocas de empregados nos postos de trabalho existentes) no mercado de trabalho brasileiro é muito alta. Em 2013, a taxa de rotatividade descontada foi de 43,4%, estando excluídos os desligamentos por motivos não ligados diretamente à decisão do empregador (como desligamentos por morte, transferências e desligamentos a pedido do trabalhador).

Partindo do pressuposto de que seja mesmo necessário reduzir os gastos com Seguro Desemprego, nada mais lógico do que reduzir a rotatividade do mercado de trabalho, em particular, as dispensas sem justa causa.

Contudo, para não debater a limitação do poder patronal de descartar empregados, foi difundido o argumento da desídia para explicar a rotatividade. Afirma-se que, uma vez completado o período de vínculo necessário à requisição de alguma parcela do Seguro Desemprego, o trabalhador passa a fazer “corpo mole” para forçar a dispensa pelo empregador. Destarte, a redução da concessão do direito faria com que os trabalhadores permanecessem mais nos seus postos.

Seguem alguns indicadores para testar a hipótese da desídia:

1) Em 2013, mais de um quarto das dispensas sem justa causa, 3,2 milhões (25,9%), ocorrem com menos de 6 meses de vínculo, ou seja, o trabalhador nem teve direito potencial a requerer o Seguro. Assim, de início, a hipótese da desídia não pode explicar mais de um quarto de todas as dispensas patronais sem justa causa.

2) Entre 2002 e 2013, os desligamentos a pedido dos trabalhadores cresceram 3,5 vezes, passando de 1,8 milhões para 6,5 milhões por ano. Trata-se de incremento quase duas vezes maior do que a dispensa por justa causa no mesmo período (1,8). A hipótese da desídia, se em algum contexto mereceria qualquer crédito, estaria se enfraquecendo progressivamente em termos absolutos e proporcionais.

Contudo, esse indicador dos pedidos de desligamento é ainda mais revelador. Acontece que o argumento da desídia pressupõe que o trabalhador conseguirá realocação em um posto de trabalho após obter o Seguro, ou sua estratégia perderia sentido. Mas os dados revelam que, ao longo dos anos 2000, justamente quando crescem muito as chances de conseguir novo emprego, ou seja, quando houve maior incentivo para os trabalhadores “forçarem” a dispensa, crescem os pedidos de desligamento a pedido (que não dão direito ao Seguro) muito mais do que as dispensas sem justa causa e mesmo a taxa de rotatividade. Desse modo, o percentual de desligamentos por decisão do empregador caiu de 77,8%, em 2002, para 68,1%, em 2013. As saídas a pedido passaram de 15,6% para 25% do total das causas de desligamento no período. Ou seja, os trabalhadores ficam mais subjugados aos seus postos quando há menos oportunidades de emprego, e pedem para sair muito mais quando têm opções. 

Isso indica que, do ponto de vista do mercado de trabalho, o argumento da desídia não se sustenta para explicar a dinâmica da rotatividade e dos gastos com Seguro Desemprego. Tivesse a desídia poder explicativo, não haveria esse crescimento de dispensas a pedido. O que acontece, em regra, pelo contrário, é o trabalhador se submeter a péssimas condições de trabalho para manter o emprego. Vários indicadores evidenciam isso, e vão da frequência e incidência de adoecimentos, às piores formas de exploração do trabalho. Exatamente por isso que, quando há oportunidade, se multiplica o número de trabalhadores que pedem para sair em busca de emprego melhor.

A verdadeira dinâmica que prevalece no mercado de trabalho brasileiro é o uso da dispensa, pelo empregador, como forma de disciplinamento da força de trabalho inserida em empregos predominantemente precários. Os empresários dispensam os trabalhadores como forma de coibir e inibir insatisfações e reivindicações, já que há parcos limites à dispensa. Com a edição da MP 665 e o aumento do tempo necessário para obter o Seguro, essa intensa vulnerabilidade do trabalhador frente à dispensa, e, portanto, face ao empregador, se acentua, reduzindo as chances de contestação e promovendo um padrão de gestão do trabalho ainda mais precário.

O próprio pressuposto da desídia como estratégia recorrente dos trabalhadores carece de prova. Mas, presumindo que fosse comum esse tipo de comportamento, a concessão do Seguro ainda assim dependeria da ação do empregador, que poderia melhorar as condições de trabalho para estimular o empregado, ao invés de expeli-lo do posto: ou seja, continuaria sendo uma opção de gestão. Ou, num caso hipotético insanável, caberia ao empregador a dispensa por justa causa, e aqui entramos no segundo argumento que sustenta o corte do direito ao Seguro Desemprego: o conluio entre empregado e patrão.

È comum atribuir o montante e a elevação dos gastos com Seguro Desemprego à formação de conluios para a obtenção do benefício, no qual empregador e empregado simulariam a dispensa sem justa causa, e o trabalhador continuaria em atividade, só que sem a formalização do contrato. De fato, existem conluios que fraudam o direito ao Seguro, como evidenciam os resultados da Fiscalização do Trabalho. Todavia, não há qualquer evidência empírica que comprove relevância de conluios individuais no conjunto dos benefícios. Pelo contrário:

1) A formalização do emprego cresceu fortemente sobre o trabalho assalariado sem carteira nos últimos anos. Se houvesse relevância do conluio na concessão do Seguro, o trabalho sem carteira deveria crescer em paralelo à formalização, já que ele é pressuposto da fraude, na proporção de um para um.

2) Entre 2003 e 2013, o número de beneficiários do Seguro Desemprego cresceu 74,5%, enquanto o número de desligamentos aumentou 113%, e dispensa a pedido 250% no mesmo período.

O avanço da formalização sobre o emprego informal, somado ao intenso crescimento dos desligamentos que não resultaram em concessão de Seguro (especialmente das dispensas a pedido do trabalhador), é forte evidência de que conluio individual para fraude do benefício não apenas é marginal no conjunto do mercado de trabalho brasileiro, como tem decrescido.  

3) Outro indicador que ajuda a dimensionar o conluio são os flagrantes apurados pela Fiscalização do Trabalho. Em 2014, foram lavrados apenas 384 autos de infração (multas) por manter empregado sem formalização recebendo Seguro Desemprego, num universo de 78 mil empresas que receberam autuação por alguma irregularidade. Para ter uma dimensão, nesse mesmo período foram lavrados 16.770 autos de infração contra empresas que mantinham empregados sem registro, e 299.826 mil autos no total. Assim, à luz de diferentes parâmetros de ilegalidade, o conluio não parece ser fenômeno recorrentemente detectado pela Fiscalização.

Acontece que a relação entre conluio, desídia, e a concessão do Seguro Desemprego, está sob a égide do empregador, tanto por ser o agente dominante do processo de contratação, gestão e término da relação de emprego, quanto diretamente, pois cabe a ele decidir o tipo de desligamento que será informado ao Estado. Assim, no conluio, a consignação da fraude cabe ao empregador por razões óbvias. Na desídia, igualmente, já que, não sendo conluio, a dispensa (se vai ocorrer e a forma como se dá) é um monopólio social do empregador.

Aqui aparece um argumento empresarial comum, que afirma que seria impossível dispensar o trabalhador por justa causa, pois ele recorreria à Justiça, e esta beneficiaria o empegado. Esse argumento não se sustenta por diversas razões, começando pelo fato de que os trabalhadores que ingressam na Justiça são apenas pequena parcela daqueles que foram prejudicados, mesmo os que tiveram direitos básicos sonegados, como anotação da Carteira de Trabalho. De todo modo, a dispensa por justa causa atinge algumas centenas de milhares de trabalhadores todos os anos, e cresceu 2,75 vezes entre 2003 e 2013 (incremento muito superior às dispensas sem justa causa). O que ocorre é que, como já afirmei, os motivos que levam o empresário a dispensar o trabalhador normalmente se relacionam com estratégia de gestão, e não com desídia.

Em suma, como o trabalhador não pode decidir como ocorrerá a dispensa (e, em geral, sequer decidir pelo término, pois precisa do emprego para se reproduzir, inclusive fisicamente), uma política pública que vise reduzir a rotatividade, ou simplesmente defender o erário de fraudes, tem que incidir preferencialmente na demanda por força de trabalho, que detém a primazia da relação. Essas considerações não possuem qualquer viés maniqueísta ou acusatório, simplesmente buscam indicar quais agentes têm poder decisório para viabilizar uma regulação com os referidos objetivos. Essa tarefa seria facilitada pelo fato de a própria Constituição, nos artigos 7º e 239, prever a incidência de políticas de controle sobre o empregador para regular a dispensa e a rotatividade.

Se a intenção do governo fosse não conceder benefícios injustamente, seria combatida a fraude, e não o direito trabalhista (mesmo admitindo o pressuposto de que o empregado consegue emprego quando quer, a solução para contenção de gastos com o benefício seria fazer a intermediação para um novo emprego). A rotatividade é bastante concentrada por setores, o que facilita o mapeamento e investigação das empresas. Ademais, as grandes fraudes não dependem de trabalhador. Apenas umesquema criminoso, descoberto há poucas semanas, fraudou mais de R$ 15 milhões em concessão do Seguro, o equivalente a milhares de benefícios.

Contudo, para combater as fraudes seriam necessários mais Auditores Fiscais do Trabalho, carreira que, apesar de garantir direitos fundamentais e ser superavitária para o Estado em termos financeiros, vem sendo deliberadamente ignorada pelo governo, e tem hoje quadro menor do que na década de 1990. Além disso, se o governo quer equilibrar suas contas, por que não combate a informalidade do trabalho assalariado, que provoca perdas de aproximadamente 68 bilhões (somados INSS e FGTS) por ano? Isso é mais do que o dobro do total gasto anualmente com Seguro Desemprego.

A resposta dessa questão nos encaminha para as principais considerações deste texto: o governo não tem demonstrado interesse num Ministério do Trabalho forte e efetivo. Mais do que isso, não tem interesse em enfrentar os interesses patronais, no caso, limitando as possibilidades de dispensa (por conseguinte, a estratégia de disciplinamento via descarte), o que reduziria a rotatividade e os gastos com Seguro.

O que o governo está efetivamente promovendo é uma provável geração de trabalhadores que nunca terá acesso ao Seguro Desemprego. Do todos os contratos firmados em 2013, 41,2% foram encerados antes do fim do ano. A participação de jovens entre esses desligados é 50% superior à participação de jovens entre os trabalhadores que permaneciam empregados no final do ano (27,9% contra 18,7%).

Mais de 2 milhões de trabalhadores que acionaram o Seguro em 2014 não teriam acesso ao benefício após a MP 665, conforme anunciou o próprio Ministério do Trabalho. Para um primeiro pedido, simplesmente metade dos trabalhadores requerentes não teriam direito ao Seguro Desemprego.

Ou seja, provavelmente grande parte dos trabalhadores que entra agora não completará 18 meses nos moldes exigidos e nunca terá acesso ao Seguro, recrudescendo sua vulnerabilidade e precarização, em benefício de um padrão de gestão da força de trabalho predatório e com limites cada vez mais improváveis.

A MP 665 é uma política de regulação com natureza de classe, prejudicando diretamente e de diferentes modos aqueles que dependem do trabalho para sobreviver, além de não resolver o problema das fraudes ao Seguro, menos ainda o da rotatividade. 

 

* Vitor Araújo Filgueiras é pesquisador do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) e pós-doutorando em Economia na UNICAMP. Integrante do grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego no Brasil”.