2 de Maio: Dia nacional de luta e combate ao assédio moral
Este ano o Dia Nacional de Combate ao Assédio Moral nos chega com uma dor a mais, pois no dia 03/03/22 nos despedimos da presença física da Dra Margarida Barreto – médica e pesquisadora – que foi pioneira nos estudos que identificaram e conceituaram o assédio moral no trabalho em nosso país. Rendemos aqui as nossas homenagens pelo legado que ela nos deixou em livros, artigos, palestras gravadas e um site à serviço da classe trabalhadora (www.assediomoral.org).
Para além do assédio moral, Dra Margarida Barreto pesquisou o assédio sexual e o suicídio relacionados ao trabalho. Sua contribuição foi inestimável para revelar a dimensão e a densidade das violências praticadas no mundo do trabalho, como também para responsabilizar o mundo corporativo por provocar e naturalizar tais práticas cotidianas. Apesar disso, os dados são alarmantes. Segundo o TST – Tribunal Superior do Trabalho- entre 2019 e 2021, foram registrados 3.049 casos de assédio sexual e 52.936 de assédio moral. No primeiro semestre do ano passado as denúncias atingiram a marca de 31 mil casos entre assédio moral e sexual em 347 empresas, o que representou quase o triplo dos anos de 2019 e 2020. https://www.cut.org.br/noticias/denuncias-de-assedio-moral-e-sexual-aos-trabalhadores- triplicam-em-dois-anos-12f0. E isso representa apenas as pessoas que tiveram a coragem de fazer as denúncias!
O restrito tempo que nos sobra para o contato com a família e amigos já é uma violência. A grande maioria das pessoas têm uma vida devotada ao trabalho que acaba por traduzir aquele ditado “viver para trabalhar ao invés de trabalhar para viver.” Além disso, ninguém sai de casa para ser maltratado, não é mesmo? Colocar o assédio moral em pauta, faz refletir sobre o ambiente de trabalho que sangra a alma, que açoita a honra, que tira a dignidade humana e coisifica aqueles e aquelas que vivem do trabalho. As conseqüências deste tipo violência estão nas estatísticas dos transtornos mentais, das tentativas de suicídio e nos suicídios que se consumaram devido ao clima degradante de certos locais de trabalho. Quadros depressivos e ansiosos vão se constituindo pelo sofrimento vivido ou presenciado, pois ver os colegas sendo maltratados também causa impacto emocional e adoecimento. Viver a rejeição, o menosprezo, a desqualificação, a raiva contida, a honra atacada repetidamente, leva a sensação de culpa e fracasso, perda de auto-estima, descrença em si mesmo, desesperança, tornando-se maior o risco de desenvolvimento de transtornos mentais e suicídios relacionados ao trabalho.
As análises dos casos de assédio moral e os inúmeros processos judiciais ao longo de tantos anos, levaram a caracterizá-lo como uma forma de gestão e atualmente é compreendido como um assédio moral organizacional, ou seja: “Um conjunto de condutas abusivas, de qualquer natureza, exercido de forma sistemática durante certo tempo, em decorrência de uma relação de trabalho, e que resulte no vexame, humilhação ou constrangimento de uma ou mais vítimas com a finalidade de se obter o engajamento subjetivo de todo o grupo às políticas e metas da administração, por meio da ofensa a seus direitos fundamentais, podendo resultar em danos morais, físicos e psíquicos.” (Araujo, 2012-pág.76). Por tratar-se de um fenômeno mundial a OIT – Organização Internacional do Trabalho – formulou a Convenção 190 – Convenção sobre Violência e Assédio – aprovada na assembleia geral da 108ª Conferência da Organização Internacional do Trabalho em 2019, a qual já considera inadmissível qualquer prática e comportamento inaceitável mesmo que ocorra uma única vez. Destaca a violência de gênero e o assédio sexual.
Abordar a questão de gênero toca na ferida machista, pois todas as estatísticas de assédio moral ou sexual colocam as mulheres em ampla desvantagem. “O assédio sexual caminha para o assédio moral quando o agressor não atinge seus objetivos.” (Barreto, 2003 pg. 200). Há uma luta nacional para que o Brasil assine a Convenção 190 da OIT, pois ela inclui entre os aspectos decorrentes de condições organizacionais aqueles relacionados à violência e assédio; traz no seu artigo quinto a necessidade de organização dos coletivos de trabalhadores/as e no artigo nono destaca a participação dos trabalhadores na construção da política de trabalho.
Na recomendação 8, que acompanha a Convenção 190, alerta para condições organizacionais, de gestão, de clientela, abuso de poder, aspectos culturais como desencadeantes das violências. Sabemos bem do peso que a cultura do país acarreta nas formas de expressão das violências dentro dos estabelecimentos de trabalho. A cultura escravocrata implantada neste país, modernizada e camuflada, segue com seus algozes. Somos filhos de uma nação que não foi descoberta, mas foi invadida por europeus que vieram se apossar do que não lhes pertencia. Para dominarem, torturaram e mataram quem não se submeteu aos seus desmandos; estupraram as mulheres; seqüestraram e escravizaram africanos e com as mesmas práticas, criaram uma classe trabalhadora subalternizada. A violência tem sido estimulada todos os dias por aqueles que se dizem governantes do país.
Precisamos entender que o ambiente de trabalho é um microcosmo no qual tudo o que acontece para além muros pode se expressar lá dentro. Muitos de vocês devem se lembrar de uma notícia na imprensa: cinco professoras, após passarem no concurso, não foram contratadas … por serem gordas! Soubemos então que a gordofobia era uma prática discriminatória institucionalizada.(https://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?https://www1.fo lha.uol.com.br/cotidiano/2011/02/869371-professoras-dizem-ter-sido-vetadas-por- obesidade.shtml). Os trabalhadores com deficiência constituem um outro grupo que sofre violências múltiplas e, raramente, conseguem uma ascensão dentro do plano de carreira das empresas e instituições. Ainda somos obrigados a conviver com o trabalho escravo ou análogo a ele, em pleno século XXI. E por que tudo isso acontece com tanta freqüência no mundo do trabalho?
Os estudos mostram que há uma intensificação do trabalho criando ambientes cada vez mais competitivos. Há um crescente enxugamento de pessoal com diminuição de postos de trabalho, e portanto, sobrecarga dos que ficam. A pressão por resultados, as metas abusivas, quase sempre inatingíveis, criam tensões adoecedoras entre os trabalhadores, que vêem seus colegas como rivais, quando deveriam buscar a união e coleguismo. O clima de “vale tudo”, hostil e ameaçador, abre espaço para práticas de violência psicológica e assédio moral, que pode se expressar por injúria racial, gordofobia, intolerância a escolhas sexuais não tradicionais e toda sorte de humilhações e constrangimentos, além do assédio sexual. Aqueles/as que são vítimas de acidentes ou doenças do trabalho ou aqueles/as que reivindicam e cobram direitos, acabam sendo os mais atingidos por práticas humilhantes, pois as empresas querem se ver livres dessas pessoas. Assistimos pessoas sendo tratadas como objetos descartáveis. A finalidade principal do assédio moral organizacional é pressionar para obter o desempenho esperado, coibir qualquer contestação, intimidar e ameaçar os descontentes e discriminar os adoecidos, culpabilizando-os pelas doenças e rotulando-os de fracos ou pouco empenhados.
O aumento do desemprego e dos empregos precários, sem direitos e condições de trabalho, fazem crescer o medo de perder um emprego com carteira assinada. Os patrões sabem disso e querem explorar ao máximo, desrespeitando os limites humanos em troca de um registro em carteira. Em nome da sobrevivência e da obrigação de dar uma vida digna à família, a grande maioria dos trabalhadores/as têm suportado o insuportável.
As empresas apostam em medidas inócuas para “cuidar da saúde mental”, como salas de descompressão, ginástica laboral e meditação, mantendo todas as condições de trabalho da mesma forma. A nossa proposta para diminuir a violência começa por redução das metas, por garantia de direitos e estabilidade no emprego, por diminuição das horas de trabalho, aumento da contratação de pessoal e respeito pela pessoa humana. De nada vale ter sala de descompressão, se as pessoas trabalham em dias de folga para tentar bater metas crescentes e correm o risco de demissão e discriminação o tempo todo.
Neste dia nacional de denúncia, de enfrentamento e de conscientização sobre o assédio moral e outras violências temos que ter claro que nenhuma solução será individual. Durante a pandemia, ficou muito claro que a economia, a sobrevivência e a segurança da população dependem do povo trabalhador, que verdadeiramente produz as riquezas do país. O que teria acontecido se os trabalhadores tivessem cruzado os braços? E agora, o que aconteceria? Em ano eleitoral temos que optar por candidatos que honrem e valorizem os trabalhadores e seus sindicatos, que representam as possibilidades de lutas coletivas. Os sindicatos e as Centrais Sindicais serão sempre o ponto de aglutinação para buscar formas coletivas de eliminação destas práticas. A nossa resistência vem de longe – desde 1500 – foi iniciada com os povos originários que lutam até hoje sem desistir jamais. A luta é no campo, na cidade e não podemos nos calar, ninguém solta a mão de ninguém e vamos em frente. As empresas só têm medo quando chegam as multas milionárias que elas são obrigadas a pagar por práticas violentas. Vamos continuar denunciando. Quem estiver passando por situações constrangedoras deve procurar ajuda e orientação para saber como agir. Ameaças e injúrias (xingamentos), racismo e assédio sexual devem ser relatados em boletins de ocorrência. A anotação sistemática dos atos violentos pode constituir um dossiê que será útil para um advogado fazer uma defesa jurídica. Busque o seu sindicato. O SUS dispõe de uma rede de CEREST – Centro de Referência em Saúde do Trabalhador – que estão à disposição para o atendimento de todos os trabalhadores e trabalhadoras formais e informais. A luta sempre continua! Dra Margarida Barreto presente!!!
Eliana Pintor é psicóloga, mestre em psicologia da saúde, Núcleo Semente – Saúde mental e Direitos Humanos Relacionados ao Trabalho do Instituto Sedes Sapientiae.